O exoesqueleto e a síndrome de vira-latas do conservadorismo

Não imaginei que teria algo pra falar da Copa do Mundo do Brasil, mas o “chute inicial” da copa e sua repercussão me obrigaram a dar minha opinião.

Durante a abertura do evento, Juliano Pinto deu o pontapé inicial da Copa. Detalhe: Juliano, de 29 anos, é paraplégico e tem paralisia total do tronco e dos membro inferiores. Para ser capaz de dar o chute, utilizou um exoesqueleto desenvolvido pela equipe do neurocientista brasileiro Miguel Nicolelis.

Pois bem, o conservadorismo, que adora impingir sua síndrome de vira-latas no povo brasileiro, apressou-se para desqualificar o ato. Um de seus “proeminentes” porta-vozes, o blogueiro da Veja Reinaldo Azevedo, coloca em dúvida a seriedade do neurocientista brasileiro, afirmando que sua fama é muito maior que o “proveito” que ele proporciona. Afirma também que a tecnologia utilizada por Nicolelis não é nova. Resumindo: fez pouco caso da equipe que produziu o exoesqueleto e ainda do financiamento estatal do projeto. Para corroborar suas “desconfianças”, Azevedo juntou ao texto alguns depoimentos de seus amigos, sem deixar claro o critério da escolha. Outro blogueiro da Veja, Diogo Mainardi, classificou o projeto de Nicolelis como “circo de horrores”.

Tentando surfar a mesma onda, o pseudo-cantor Roger Moreira que, na falta de sucesso como músico procura ser mais um porta-voz dos diletantes do conservadorismo, ofende a pesquisa da equipe de Nicolelis chamando a tecnologia que permite um exoesqueleto ser controlado diretamente pelo cérebro de “arcaica” (SIC). Roger ganha a vida tocando em um talk show obscuro e produzindo textos “filosóficos” de, no máximo, 140 caracteres.

Os pesquisadores

O projeto Andar de Novo, responsável pela confecção do exoesqueleto, é um trabalho conjunto do Centro de Neuroengenharia da Universidade Duke e o Instituto Internacional de Neurociências de Natal, ambos dirigidos pelo neurofisiologista brasileiro Miguel Nicolelis. O projeto já contou com a participação de mais de 150 cientistas.

Miguel Angelo Laporta Nicolelis é formado em medicina pela USP, com doutorado em Fisiologia Geral também pela USP e pós-doutorado em Fisiologia e Biofísica pela Universidade de Hahnemann. É presidente do Instituto Internacional de Neurociências de Natal, co-Diretor do Center for Neuroengineering da Universidade Duke, nos EUA, onde também é professor de neurociências. Nicolelis faz parte de vários projetos de pesquisa, acumula um monte de prêmios e honrarias e tem centenas de trabalhos científicos publicados.

Além de Nicolelis, o IINN conta com outros importantes pesquisadores, como Rômulo Fuentes, bioquímico, doutor em Ciências Biomédicas e pós-doutor em Neurobiología; o fisioterapeuta Edgard Morya, doutor e pós-doutor em Fisiologia Humana; Marco Freire, biólogo e doutor em Neurociências e Biologia Celular; Hougelle Simplício, neurocirurgião e doutor em neurologia; Mariana de Araújo, bióloga e doutora em Neurociência Emocional e Cognitiva; Fabrício Brasil, engenheiro elétrico, mestre em engenharia mecânica e doutor em neurociência; Renan Moioli, engenheiro elétrico, mestre em robótica e doutor em ciências cognitivas; além de vários graduandos, mestrandos e doutorandos.

Essa equipe já publicou dezenas de trabalhos nos últimos anos.

Tecnologia arcaica?

O exoesqueleto apresentado foi bastante criticado por ser “um trambolho”, uma coisa enorme, feia e pesada. O músico Roger Moreira, que propagandeia ser um dos gênios brasileiros (apesar de sua produção científica inexistente), classificou a tecnologia como “arcaica”. Será verdade?

Apesar de haverem, sim, outros exoesqueletos já produzidos, inclusive comercialmente, que são mais leves e menos desajeitados, nenhum outro tem a capacidade de ser movido a partir da vontade do usuário e ainda dar um feedback do movimento. Assim, nenhum deles precisa da capacidade computacional do equipamento brasileiro. Também não precisam de uma enorme quantidade de sensores neurológicos, nem dos sensores de tato.

Mas será que o fato de ser enorme, pesado e desajeitado impedirá o exoesqueleto de ser, de fato, usado? Vamos pensar no assunto:

O primeiro computador da História, o Electronic Numerical Integrator And Computer (ENIAC), era um monstro de 30 toneladas que ocupava  180 m² de área construída. Foram gastos (em valores atualizados) cerca de  US$ 6 milhões em sua construção, que levou 3 anos, mais um ano que levaram só pra ligá-lo. Sua capacidade de processamento era menor do que a de qualquer calculadora moderna. Apesar disso, em dez anos, fez mais cálculos do que toda a humanidade em toda a sua História.

Menos de meio século depois do ENIAC, o primeiro computador que tive em casa era um trambolho bem menor. Com uma frequência de  2 MHz, incríveis 48 KB de memória RAM e pesando uns 20 Kg, tinha menos capacidade de processamento do que a injeção eletrônica de um carro moderno. Nessa época, a capacidade de processamento do meu telefone celular atual era considerada um supercomputador.

Nesses poucos anos desde o ENIAC, a humanidade foi capaz de passar de 30 toneladas a alguns gramas o tamanho de um computador, multiplicando muitas vezes sua capacidade de processamento. E a miniaturização continua.

Quem imaginaria, quando usávamos monitores de fósforo verde de 16 linhas x 64 colunas que teríamos telas Full HD? Pior: que essas telas estariam em telefones?

Achar que um projeto inovador, no meio da pesquisa, deveria ser já miniaturizado é o mesmo que acreditar que Star Trek é o mundo real.

Publicações

Azevedo acusa a equipe do projeto Andar de Novo de não publicar os resultados de suas pesquisas. Talvez o blogueiro da Veja tenha esquecido de consultar a revista Proceedings of the National Academy of Sciences, dos EUA, na edição de agosto último (leia aqui), ou a revista Science Translational Medicine de novembro (leia aqui) ou talvez a Scientific Reports de janeiro (leia aqui). Veja aqui alguns dos artigos publicados por Nicolelis e sua equipe.

De qualquer forma, a própria equipe do Andar de Novo afirma que os resultados finais estão em fase de publicação, que deve ocorrer em breve.

Propaganda

Azevedo acusa Nicolelis de fazer mais propaganda do que entregar resultados. O que Azevedo não teve coragem de fazer é uma análise dos motivos porque ele acha que isso acontece.

Nicolelis é, de fato, um grande fazedor de promessas. Adora se gabar dos seus sonhos e de onde esses sonhos podem levar a humanidade. Mas há um fato mais importante: a equipe do Andar de Novo só sobrevive devido a essa propaganda e esse é o problema central que nenhum dos pitaqueiros conservadores foi capaz de tocar.

O projeto é sustentado pela Associação Alberto Santos Dumont para Apoio à Pesquisa (AASDAP), uma organização particular que recebeu o status de OSCIP (Organização de Sociedade Civil de Interesse Público). Isso quer dizer que ela recebe dinheiro público diretamente ou indiretamente (através de empresas que, depois, vão descontar a doação dos impostos). A captação desses recursos só é possível se o projeto tiver visibilidade e, portanto, se fizer propaganda.

As OSCIPs, na prática, significam a privatização do serviço público brasileiro. A lei permite que organizações particulares que conseguem status de OSCIP sejam contratadas sem qualquer processo de licitação, o que torna tais organizações um grande risco para os serviços públicos e para o erário. Atualmente, as OSs e OSCIPs são um câncer na saúde pública, que corrói os recursos e entrega um péssimo serviço.

Esses tentáculo estão se espalhando para a pesquisa e tecnologia.

A única forma de garantir que a pesquisa e a tecnologia brasileiras não tenham fins estritamente comerciais, mas voltados às necessidades do povo brasileiro é garantir que a comunidade acadêmica tenha controle sobre essa pesquisa e que nenhum centavo do dinheiro público seja usado em pesquisas particulares. É preciso aumentar, e muito, o investimento em pesquisa, mas com dinheiro público só pra universidades públicas.

3 pensamentos sobre “O exoesqueleto e a síndrome de vira-latas do conservadorismo

  1. aqui tem uma critica ao projeto bem construída, diferente dos ataques meio sem base do reinaldo e companhia:
    gizmodo.uol.com.br/nicolelis-futuro-cerebro/

    o que parece ter sido atacado foi a promessa, que realmente foi diferente.

    Curtido por 1 pessoa

  2. No fundo é por que o Brasil perdeu a copa…no qual o exoesqueleto pago os pratos quebrados dos outros…em outras palavras o 7 a 1 da Alemanha..e demais consequências desastrosas..

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