A fome como resultado do Capitalismo

A fome como projeto estrutural do capital

Maurício Moura

A relação entre desnutrição e subdesenvolvimento infantil demonstrada no estudo de Bangladesh (Nature, 2017)1 não representa mero acidente sistêmico, mas manifesta um mecanismo intencional de controle de classe. Em 2024, a insegurança alimentar aguda atingiu 295 milhões de pessoas em 53 países, marcando o sexto ano consecutivo de aumento2. Esta escalada reflete a funcionalidade da miséria para a acumulação capitalista, gerando exército industrial de reserva, desorganizando a resistência coletiva e maximizando a extração de mais-valia. Conflitos e choques climáticos, frequentemente apresentados como causas externas, são mediações da crise estrutural do capitalismo em sua fase imperialista3.

Controle populacional e acumulação

A manutenção deliberada do exército industrial de reserva4 constitui pilar central da acumulação capitalista. Em Bangladesh, onde 40% das crianças sofrem nanismo aos 2 anos1, a desnutrição crônica assegura um contingente de trabalhadores condenados à subsistência precária, vulneráveis à superexploração. Esta dinâmica agrava-se com as mudanças climáticas: o país é o sétimo mais vulnerável a desastres ambientais, com inundações recorrentes que deslocam milhões5. A fome opera como regulador demográfico, produzindo adultos com capacidade política reduzida, enquanto soluções individuais revelam a incapacidade do sistema em prover respostas estruturais.

Coerção econômica sistêmica

A ausência de infraestrutura básica, como em Daca onde crianças convivem com canais de esgoto abertos, não resulta de escassez tecnológica, mas de escolhas políticas de investimento6. A não universalização do saneamento transfere para mulheres trabalhadoras o trabalho reprodutivo não remunerado, liberando capital para setores exportadores.

Esta lógica manifesta-se globalmente: choques econômicos lançaram 59,4 milhões à crise alimentar em 2024, quase o dobro do período pré-pandemia2. O agravamento climático resulta da industrialização predatória imperialista, que acelera o colapso ecológico3.

Transformação da nutrição

A indústria alimentar transforma nutrição em instrumento de dominação através de alimentos ultraprocessados. Estes produtos, formulados com excesso de sal, açúcar e aditivos químicos, geram dependência fisiológica enquanto fornecem calorias vazias7. No Brasil, seu consumo cresceu 30% nas classes trabalhadoras na última década, paralelamente ao aumento da insegurança alimentar8.

Esta dinâmica duplamente lucrativa reduz custos de reprodução da força de trabalho e amplia mercados para a indústria farmacêutica, que trata doenças decorrentes da má nutrição.

Mercantilização da vida

A redução da fome a problema técnico-nutricional oculta sua raiz política9. Programas focalizados de suplementação alimentar reduzem a miséria a problema biológico, ignorando que a insegurança alimentar deriva da propriedade privada dos meios de produção.

Em Chittagong, cidade que afunda 10 vezes mais rápido que a elevação do nível do mar10, a água salgada mistura-se a esgoto e poluição industrial, transformando o cotidiano em sobrevivência precária.

Objeções e respostas

Alguns argumentam que a fome resulta principalmente de fatores naturais ou culturais11. Contudo, 75% das terras agricultáveis em países periféricos destinam-se a commodities de exportação, não a alimentos básicos8. Como demonstra Amartya Sen11, mesmo em regiões com abundância alimentar, a falta de direitos econômicos gera escassez artificial.

A produção global atual poderia alimentar 10 bilhões de pessoas12, evidenciando que o problema reside na distribuição, não na disponibilidade.

Impactos neurológicos

Estudos de neuroimagem em crianças de Daca comprovam efeitos neurais da exploração13. Lactantes desnutridos apresentam redução de matéria cinzenta correlacionada com déficits linguísticos, enquanto crianças com nanismo desenvolvem padrões atípicos de conectividade cerebral associados a QI reduzido. Estas assinaturas neurais não representam “fatalidades biológicas”, mas inscrições corporais da violência estrutural.

A hiperatividade cerebral detectada em crianças com nanismo configura estado de alerta patológico13. Quando crianças respondem mais a estímulos não sociais que a rostos humanos, revela-se desengajamento do ambiente social – forma de alienação ontológica produzida pela privação material que corrobora a tese do controle populacional intencional.

Capitalismo de crises

O desmonte de políticas públicas, como o congelamento de gastos em saneamento por 20 anos no Brasil, operacionaliza o controle populacional14.

A fome expande-se quando Estados priorizam pagamento de dívidas financeiras sobre direitos básicos, transferindo riqueza para o capital financeiro.

Em 2024, conflitos – principal causa da fome – afetaram 140 milhões em 20 países2, muitos ricos em recursos estratégicos controlados por corporações transnacionais.

A separação dos trabalhadores dos meios de subsistência gera perda dupla de vínculos: com comunidades e saberes alimentares, e com a natureza9. No agronegócio brasileiro, a soja quintuplicou sua produção no Rio Grande do Sul avançando sobre a Mata Atlântica, enquanto flexibilizações ambientais aceleram a devastação3. O resultado é a mercantilização da vida, onde até a água torna-se mercadoria.

Dialética da catástrofe

Secas e inundações, como as que devastaram o Chifre da África em 2024, são intensificadas pelo aquecimento global – fenômeno cujas origens remontam à Revolução Industrial e à lógica expansiva do capital3. Conflitos por recursos são amplificados pela exploração neocolonial: 94% das guerras contemporâneas ocorrem em regiões com reservas estratégicas controladas por corporações8.

Projeto de libertação

Superar a fome exige a desmercantilização radical da vida. Como alertou Josué de Castro15, “a fome é o método mais silencioso de execução em massa”. Romper essa cadeia implica tributar grandes fortunas para financiar sistemas públicos universais, expropriar latifúndios para reforma agrária agroecológica, e garantir demarcação de territórios indígenas, agentes fundamentais na preservação ambiental3.

Sob o capitalismo em sua fase imperialista16, a fome não constitui falha operacional, mas instrumento de gestão política da morte.


Notas e referências

  1. STORRS, Carina. How poverty affects the brain. Nature. 13 jul. 2017. DOI 10.1038/547150a. ↩︎ ↩︎
  2. REUTERS. Conflitos e clima geram recorde de fome global em 2024, diz ONU. UOL. São Paulo: 16 mai. 2025. ↩︎ ↩︎ ↩︎
  3. FERNÁNDEZ, Luis. Crise climática é consequência do capitalismo. Conselho Indigenista Missionário – CIMI. Brasília: 5 jun. 2024. ↩︎ ↩︎ ↩︎ ↩︎ ↩︎
  4. MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Boitempo. São Paulo: 2013. ISBN 9788575592138. ↩︎
  5. REUTERS. Microcasas ‘antienchente’ se popularizam em Bangladesh. Folha de S.Paulo. São Paulo: 19 dez. 2023. ↩︎
  6. SAMPAIO JR., Plínio. Capitalismo e fome. ComCiência. Campinas: 23 set. 2015. ISSN 1519-7654. ↩︎
  7. MONTEIRO, Carlos A.; CANNON, Geoffrey; LEVY, Renata B. Ultra-processed foods: what they are and how to identify them. Public Health Nutrition. 22(5): 936-941, abr. 2019. DOI 10.1017/S1368980018003762. ↩︎
  8. BACCARIN, José. A maior crise alimentar do século 21 pode estar às portas. Unesp. São Paulo: 5 out. 2022. ↩︎ ↩︎ ↩︎
  9. FRANCO, Tânia. Alienação do trabalho: despertencimento social e desrenraizamento em relação à natureza. Cadernos CRH. Salvador: 24 set. 2011. DOI 10.1590/S0103-49792011000400012. ↩︎ ↩︎
  10. DUARTE, Fernando. Mudanças climáticas: as dramáticas fotos de cidade devastada pelo aumento do nível do mar. BBC. Londres: 2 nov. 2022. ↩︎
  11. SEN, Amartya. Poverty and Famines: An Essay on Entitlement and Deprivation. Oxford University Press. Oxford: 1981. ISBN 9780198284635. ↩︎ ↩︎
  12. FAO. The State of Food Security and Nutrition in the World 2024. Food and Agriculture Organization of the United Nations, em inglês. Roma: 2024. DOI 10.4060/cd1254en. ↩︎
  13. XIE, W., JENSEN, S.K.G., WADE, M. et al. Growth faltering is associated with altered brain functional connectivity and cognitive outcomes in urban Bangladeshi children exposed to early adversity. BMC Medicine 17, 199. 29 mai. 2019. DOI 10.1186/s12916-019-1431-5. ↩︎ ↩︎
  14. MÉSZÁROS, István. A crise estrutural do capital. Boitempo. São Paulo: 2009. ISBN 9788575591377. ↩︎
  15. CASTRO, Josué de. Geopolítica da Fome. Editora Brasiliense. São Paulo: 1951. ISBN 9788520008721. ↩︎
  16. LENIN, Vladimir. Imperialismo: fase superior do capitalismo. Marxists Internet Archive: 1917. ↩︎

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