Máfias da soberania: como a extrema direita global opera como crime organizado

Maurício Moura

A ascensão global de movimentos de extrema direita reconfigurou práticas políticas tradicionais, incorporando métodos historicamente associados ao crime organizado. Este fenômeno manifesta-se através de uma hibridização perigosa entre estruturas estatais e mecanismos ilícitos, onde lealdades pessoais suplantam compromissos institucionais (RODRIGUES, 2017). A investigação aqui proposta parte de uma premissa crítica: grupos como a aliança Trump-Bolsonaro operam segundo uma lógica que transcende o autoritarismo convencional, apropriando-se de estratégias típicas de organizações mafiosas, como extorsão sistêmica, evasão financeira transnacional e instrumentalização de crises (G1, 2024; SPITZECK, 2019).

A originalidade desta análise reside na articulação entre três dimensões interligadas:

  • Coerção institucional transnacional, observada em ameaças econômicas para interferir em sistemas judiciais soberanos;
  • Evasão e proteção, evidenciada em movimentações financeiras suspeitas e redes de blindagem jurídica extraterritorial;
  • Instrumentalização de crises, exemplificada pelo desvio de auxílio humanitário para fins geopolíticos (WEN, CHAO-FONG, et al., 2025).

Conforme argumenta Rodrigues (2017), a formação do Estado moderno sempre envolveu tensões entre monopólio da violência e práticas criminosas, mas a novidade reside na sofisticação transnacional e na instrumentalização de narrativas de vitimização (RODRIGUES, 2017).

Desenho de Pesquisa

Adotou-se uma abordagem qualitativa com estratégia de casos múltiplos incorporados (YIN, 2018), selecionados por sua capacidade de ilustrar padrões complementares:

  1. Aliança Trump-Bolsonaro: Análise de coerção econômica (ameaças tarifárias) (AFP, 2025; CAUANY, 2025) e evasão financeira (transferências suspeitas) (AGÊNCIA ESTADO, 2025; SADI, 2025);
  2. Fundação Humanitária de Gaza (GHF): Financiamento (AL JAZEERA, 2025) e uso de face humanitária para mascarar seu envolvimento na violência sistêmicas contra a população civil, inclusive participando de assassinatos (UNITED NATIONS, 2025).
  3. Perseguição a defensores de direitos humanos: Caso Francesca Albanese, demonstrando intimidação transnacional (WEN, CHAO-FONG, et al., 2025; UNITED NATIONS, 2025).

Coerção institucional como engrenagem extorsiva

O caso Trump-Bolsonaro ilustra a metamorfose de instrumentos econômicos em armas políticas. A ameaça de tarifas de 50% sobre exportações brasileiras, vinculada à interrupção de processos contra Bolsonaro, configura uma estratégia mafiosa de chantagem institucional (AFP, 2025).

Outra tática mafiosa é a da ameaça a parentes de seus desafetos, como fizeram Paulo Figueiredo (neto do ditador João Figueiredo) e Eduardo Bolsonaro (filho de Jair Bolsonaro) ao ameaçar a filha do presidente do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso (BRAGON e CHAIB, 2025), em uma tentativa de chantagem para que Jair Bolsonaro não seja julgado pelos vários crimes dos quais é acusado. Ambos, Paulo e Eduardo também são investigados pela polícia. A dupla também ameaça outros membros da suprema corte com o mesmo intuito, em uma articulação com governos estrangeiros ligados à extrema-direita, inclusive com assessoria desses governos (CASADO, 2025).

Lavagem geopolítica e economia da morte

O financiamento da Fundação Humanitária de Gaza (GHF) pelos EUA expõe a monetização de crises humanitárias. Os US$ 30 milhões injetados na entidade, isentos de auditorias pelo Departamento de Estado, contrastam com suas operações documentadas: em 549 incidentes, civis palestinos foram mortos ao buscar auxílio em zonas controladas pela GHF, frequentemente sob coordenação com empresas militares privadas (AL JAZEERA, 2025).

Esse financiamento pode estar alinhado à intenção de Trump de tomar posse do território palestino e expulsar de lá todos os 2 milhões de moradores (G1, 2025).

Já Jair Bolsonaro, que é réu por peculato, associação criminosa e lavagem de dinheiro (PORTINARI e COUTINHO, 2024) e que enviou 2 milhões de dólares para os EUA (O DIA, 2025) sem justificativa, alterou a lei, quando ainda era presidente, para “flexibilizar” o crime de evasão de divisas (GGN, 2020).

Redes de proteção como arquitetura da impunidade

A atuação de Eduardo Bolsonaro nos EUA sintetiza a emergência de santuários jurisdicionais. Enquanto articulava a aplicação da Lei Magnitsky[1] contra ministros do STF brasileiro, ele próprio estava sob investigação no Brasil por ataques às instituições democráticas. Essa dupla instrumentalização de sistemas jurídicos caracteriza a “extradição reversa”, mecanismo onde territórios soberanos são usados para evadir responsabilizações (CASADO, 2025).

Os EUA têm se tornado tal santuário. Vários foragidos da justiça brasileira que tem ligações com o bolsonarismo tem se refugiado em território estadunidense, como Allan dos Santos (CARLUCCI, 2025), Oswaldo Eustáquio – que responde por crimes como ameaça e corrupção de menores (PODER 360, 2025) –, além do próprio Eduardo Bolsonaro, que declara abertamente que está lá para não ser preso no Brasil (PEREIRA, 2025). Foi exatamente o risco de fuga para os EUA que fez com que a Justiça decretasse uma série de medidas restritivas contra o réu Jair Bolsonaro (MARTINS, 2025).

Anatomia de uma máfia pós-moderna

A convergência entre os casos analisados revela uma reconfiguração do crime organizado no século XXI. Máfias tradicionais baseiam-se em controle territorial (G1, 2024), mas a variante política opera através de infiltração institucional e soberania instrumentalizada (RODRIGUES, 2017). O caso Bolsonaro exemplifica esse deslocamento: recursos desviados financiam redes de proteção para elites acusadas de crimes contra o Estado, não mercados ilegais.

A externalização da violência, traço distintivo, manifesta-se na terceirização de repressão. Na Palestina, empresas militares privadas convertem ajuda humanitária em instrumento de controle geopolítico (BBC, 2025), enquanto grupos como Proud Boys atuam como “gangues políticas” com hierarquia rígida e métodos de intimidação (KUNZELMAN e WHITEHURST, 2023).

Inovações na economia política do crime

O conceito de lavagem geopolítica proposto captura a transformação de crises em oportunidades para fluxos financeiros opacos. O financiamento da GHF gera lucros diretos via contratos com fornecedores de segurança, criando um ciclo perverso onde violações alimentam novos investimentos.

Paralelamente, a extradição reversa emerge como mecanismo de evasão de responsabilização. Territórios soberanos convertem-se em santuários por conivência política, como evidenciado no acolhimento norte-americano a figuras que respondem por crimes.

Limitações e Desafios Conceituais

A opacidade de redes financeiras transnacionais dificulta o rastreamento completo de fluxos ilícitos. Documentos sigilosos sobre contratos de segurança permanecem inacessíveis, e a assimetria entre relatórios internacionais e narrativas oficiais de potências exige cautela interpretativa.

Conclusão

Os achados confirmam que a nova extrema direita opera como uma organização criminosa hibridizada, cuja periculosidade reside na instrumentalização de instituições democráticas para práticas mafiosas. Três atributos definem essa máfia pós-moderna:

  1. Transnacionalização de redes de proteção, usando fronteiras como escudos contra responsabilização por crimes cometidos;
  2. Narrativas de vitimização que convertem processos legítimos em “perseguição política”;
  3. Corrupção sistêmica de mecanismos institucionais, desde isenções de auditoria até judicialização estratégica.

Notas

[1] A Lei Magnitsky é uma legislação dos EUA (2012, ampliada em 2016) que permite sanções contra estrangeiros acusados de violações graves de direitos humanos ou corrupção, incluindo bloqueio de bens nos EUA e proibição de entrada no país. Criada após a morte do advogado russo Sergei Magnitsky, a lei foi originalmente concebida para combater impunidade, mas críticos apontam sua instrumentalização política, vistas como interferência em soberanias nacionais e uso seletivo para pressão geopolítica

Bibliografia

AFP. Trump reforça ameaça tarifária e insiste para que o Brasil ‘mude de rumo’ e ‘pare de atacar’ Bolsonaro. O Globo, 2025.

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BBC. A controversa organização apoiada por EUA e Israel no centro de incidentes com morte em distribuição de comida em Gaza. BBC News Brasil, 2025.

BRAGON, R.; CHAIB, J. Ofensiva de bolsonaristas nos EUA mira presidente do STF e insinua novas sanções de Trump. Folha de S.Paulo, 20 jun. 2025.

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CASADO, L. Sanção contra Moraes orquestrada por Eduardo Bolsonaro nos EUA tem 3 bases. UOL, 21 jul. 2025.

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KUNZELMAN, M.; WHITEHURST, L. Prosecutor: Proud Boys viewed themselves as ‘Trump’s army’. AP News, 24 abr. 2023.

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O DIA. Moraes cita repasse de R$ 2 milhões de Bolsonaro a Eduardo nos EUA em decisão que impõe prisão domiciliar, 18 jul. 2025.

PEREIRA, F. Restrições impostas pelo STF enterram estratégia de Bolsonaro para 2026. UOL, 19 jul. 2025.

PODER 360. Foragido no Brasil, Eustáquio recebe visto de jornalista dos EUA, 20 jul. 2025.

PORTINARI, N.; COUTINHO,  M. PF indicia Bolsonaro por venda de joias recebidas na Presidência. UOL, 04 jul. 2024.

RODRIGUES, O. D. C. Crime organizado: análise histórica, sociológica e jurídica. TGI (Graduação em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2017.

SADI, A. No STF, apreensão de US$ 14 mil reforça risco de fuga de Bolsonaro. G1, 2025.

SPITZECK, H. H. O que as empresas têm em comum com a máfia? Época Negócios, 2019.

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UNITED NATIONS. ONU pede reversão de sanções impostas pelos EUA à relatora sobre palestinos BR. UN News, 10 jul. 2025.

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YIN, R. K. Case Study Research and Applications. 6. ed. Thousand Oaks: SAGE Publications, 2018.

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