Por trás do espetáculo, os dois lados da mesma lógica de consumo que incinera o planeta
Maurício Moura
A COP30 em Belém já começou e o roteiro segue implacável. Enquanto negociadores debatem vírgulas em textos que poucos lerão e corporações anunciam “compromissos climáticos” em eventos paralelos, a máquina do capitalismo verde acelera. Do outro lado da cidade, a Cúpula dos Povos entra em seu clímax retórico, com discursos inflamados que ecoam em salas superlotadas. Mas o que parece oposição é, na verdade, simbiose: ambas as esferas validam a premissa fundamental de que a crise climática pode ser resolvida sem questionar o paradigma do crescimento infinito.
A coreografia é a mesma: na zona oficial, fala-se em “neutralidade carbônica” e “mercados de carbono”, conceitos que transformam a atmosfera em commodity e, na “zona alternativa”, denuncia-se a “economia verde” enquanto propõe “alternativas” que utilizam estritamente a mesma lógica. A contradição não é acidental, mas estrutural.
A verdade que nenhum dos lados quer encarar é que o problema não é como produzir energia, mas por que consumimos tanta. Enquanto a COP30 aprimora a maquiagem verde do capitalismo, a Cúpula dos Povos oferece o contraponto folclórico que torna a farsa crível. O planeta, entretanto, não se deixa enganar pela encenação.
A cortina de fumaça da “transição verde”
O termo “transição energética” foi esvaziado de qualquer potencial transformador e cooptado pelo capitalismo para significar uma mera oportunidade de mercado. A contradição fundamental é ignorada: o mesmo sistema que exige crescimento infinito e consumo acelerado agora se vende como a solução para os limites ecológicos que ele próprio criou.
A falsa promessa da energia limpa reside em sua definição desonesta. Ela considera apenas um tipo de impacto, as emissões de gases de efeito estufa (GEE) durante a operação e declara a tecnologia “limpa”. Esta é uma análise deliberadamente míope. Uma avaliação completa, do berço ao túmulo, revela que nenhuma fonte de energia em escala industrial é benigna. Seu impacto meramente se desloca no espaço e no tempo e se manifesta de formas diferentes: na devastação de um bioma único, na contaminação de águas subterrâneas ou na geração de resíduos de milênios de toxicidade.
O paradoxo amazônico: salvar a floresta destruindo-a
A escolha de Belém como sede é um ato de profundo simbolismo, mas também de cinismo. A Amazônia é apresentada ao mesmo tempo como vítima a ser salva e como ativo a ser explorado para sua própria salvação. Enquanto os discursos ecoam nos centros de convenção, a realidade material da floresta grita o contrário.
O ponto de não retorno da Amazônia não é uma especulação alarmista, mas uma projeção baseada em dados empíricos. O desmatamento, que já consome cerca de 20% da floresta original, combinado com as mudanças climáticas globais, está degradando o mecanismo dos “rios voadores” 1. A floresta, que criava seu próprio regime de chuvas, agora vê esse ciclo se romper, tornando-a mais seca e vulnerável a incêndios de grandes proporções. O fogo, por sua vez, acelera a degradação, criando um ciclo vicioso de savanização.
O que a narrativa oficial da “economia verde” oferece para este colapso iminente? Muitas vezes, a própria mineração predatória para obter minerais essenciais para turbinas eólicas, baterias de veículos elétricos e painéis solares. O ouro, o cobre e as terras raras necessários para esta “transição” são os mesmos vetores de destruição que empurram a floresta para o abismo. É uma equação perversa: para “salvar” o clima global, sacrifica-se o maior repositório de biodiversidade terrestre.
Os impactos ocultos da “economia verde”
A obsessão com o carbono criou uma cegueira seletiva. Ao celebrarmos a redução de emissões, fechamos os olhos para uma nova cadeia de devastação.
O pesadelo das terras raras e da mineração
A energia eólica e solar, assim como a mobilidade elétrica, dependem criticamente de um grupo de 17 elementos conhecidos como terras raras. A extração e processamento de terras raras é um dos processos industriais mais sujos e intoxicantes do planeta. Para cada tonelada de ímãs de neodímio extraídos, milhares de toneladas de resíduos de rocha são gerados, frequentemente contaminados com metais pesados e materiais radioativos que vazam para o solo e os lençóis freáticos 2.
Este não é um problema marginal, mas central. A Agência Internacional de Energia projeta que a demanda por estes minerais pode sextuplicar até 2040 para atender às metas de “transição”. Esta é uma mineração de intensidade colossal, que se desloca dos países do Norte global para o Sul global, repetindo o velho padrão colonial de externalização dos custos ambientais e sociais.
O legado tóxico da energia nuclear e das hidrelétricas
A energia nuclear é frequentemente reinserida no debate como uma “fonte de baixo carbono”. O adjetivo “limpa”, porém, é uma afronta à lógica quando se considera o legado dos rejeitos radioativos. Estes materiais permanecem perigosos por dezenas a centenas de milhares de anos, um problema de escala geológica para o qual não existe solução técnica definitiva, apenas depósitos provisórios que se tornam uma herança envenenada para as futuras gerações.
Da mesma forma, as grandes hidrelétricas, outrora aclamadas como a energia verde do Brasil, revelaram seu verdadeiro custo. Grandes barragens são máquinas de destruição ecológica e social. Elas alagam vastas extensões de floresta, liberando metano (um GEE muito mais potente que o CO₂) pela decomposição da matéria orgânica submersa. Além disso, destroem ecossistemas fluviais inteiros e deslocam comunidades tradicionais e indígenas, aprofundando conflitos fundiários e apagando modos de vida 3.
A única saída: reduzir o consumo de energia
Diante deste panorama, fica claro que a solução tecnológica é uma ilusão. A verdadeira questão não é como produzir a mesma quantidade de energia de forma “mais limpa”, mas por que precisamos de tanta energia, em primeiro lugar.
A busca por eficiência energética, sem questionar o volume total de consumo, é um beco sem saída. O chamado “Paradoxo de Jevons” demonstra que ganhos de eficiência tendem a levar a um aumento do consumo total, pois o recurso se torna mais acessível e é aplicado em novas frentes de expansão. A eficiência, divorciada de um teto máximo de consumo, apenas acelera a máquina.
Planejamento versus Mercado
A ideia de limitar o consumo soa como heresia em uma economia capitalista fundada na acumulação infinita. No entanto, é a única proposição racional. Trata-se de substituir a lógica do mercado (que incentiva o desperdício e o consumismo através da obsolescência programada e da publicidade) por uma lógica de planejamento democrático e soberano.
Isso implica:
- Produzir a partir de um plano, dando controle aos trabalhadores para decidirem o que, como e quando produzir;
- Reorganizar o sistema de transporte, também sob o controle dos trabalhadores, privilegiando o coletivo e o ferroviário sobre o individual e o rodoviário;
- Combater o desperdício estrutural na indústria e no agronegócio, onde uma parcela significativa da produção é descartada por não atender a critérios de mercado ou por ser supérflua;
- Redesenhar as cidades para reduzir a necessidade de deslocamentos longos e promover economias de proximidade onde o trabalhador more perto do seu trabalho e todo núcleo urbano tenha uma reserva onde agricultores produzem o alimento consumido ali;
- Estabelecer tetos energéticos per capita, priorizando o atendimento das necessidades humanas (saúde, educação, alimentação, moradia e lazer) em detrimento da produção de supérfluos.
Esta não é uma defesa da austeridade ou do empobrecimento. É, pelo contrário, uma defesa da abundância racional. A abundância de tempo livre, de ar puro, de água limpa, de comunidades coesas e de um planeta habitável. A “abundância” prometida pelo consumismo (de gadgets, de fast-fashion, de carros) é, na verdade, a escassez materializada em lixo tóxico e ecossistemas devastados.
A COP30, em seu formato atual, não ousará tocar neste cerne da questão. Seu script já está escrito: mais mercado de carbono, mais financiamento verde para as mesmas corporações, mais promessas vazias. A verdadeira transição, no entanto, não será assinada em um tratado. Ela será forjada na rejeição consciente do consumismo e na construção de uma sociedade que valorize mais a vida do que a mercadoria. Enquanto não encararmos essa realidade, estaremos apenas escolhendo a cor do bonde que leva ao colapso.
A Cúpula dos Povos e a mercantilização da resistência
Enquanto a COP30 opera sob auspícios corporativos, a Cúpula dos Povos se apresenta como seu contraponto autêntico. Esta oposição, no entanto, é mais performática que substantiva. A Cúpula dos Povos, apesar do discurso de resistência, opera dentro do mesmo paradigma produtivista que alimenta a crise climática, limitando-se a gerenciar contradições sem oferecer ruptura real.
O evento mobiliza milhares de indígenas, quilombolas e ativistas, reunindo representantes de mais de mil movimentos sociais e organizações populares de todo o mundo 4. Porém, sua estratégia de visibilidade depende das mesmas plataformas digitais que denuncia. A espetacularização da luta social é meticulosamente produzida para alimentar os algoritmos das Big Techs, essas mesmas corporações que perpetuam o extrativismo em escala planetária através de data centers vorazes em recursos hídricos e energéticos 5. Enquanto os corpos infantis, femininos, negros e indígenas são hipersensualizados como espetáculo nas redes sociais 6, as condições materiais que permitem essa exploração digital permanecem intocadas e pior: incentivadas por essa lógica de visibilidade digital. Esta não é mera contradição midiática, mas a demonstração de um dilema estrutural: o capitalismo, em sua fase imperialista, converte até a dor política em commodity algorítmica.
O conhecimento ancestral, celebrado como alternativa, é rapidamente esvaziado de seu potencial revolucionário. As performances culturais criam um espetáculo etnográfico que neutraliza a ameaça política contida nessas cosmovisões 7. O saber indígena deixa de ser modo alternativo de relação com a natureza para tornar-se “tecnologia social” a ser pilotada por ONGs internacionais.
A Cúpula orgulha-se de reunir “vozes excluídas”, mas esta representação opera dentro de limites estritamente controlados. Os povos tradicionais são ouvidos como portadores de cultura, nunca como propositores de um projeto político-econômico alternativo. A função real da Cúpula é servir como válvula de escape para pressões que, de outra forma, desafariam o consenso desenvolvimentista 7.
Enquanto a Articulação dos Povos Indígenas cobra “maior representatividade nas negociações” 8, as mineradoras seguem avançando sobre seus territórios com conivência estatal. O documento final da Cúpula será mais uma peça no arquivo de demandas não atendidas: sua função não é produzir mudança, mas certificar que o ritual da participação foi cumprido.
Um bonde chamado Colapso
A COP30 e sua sombra contestatória na Cúpula dos Povos representam as duas faces de um mesmo consenso intransponível: a incapacidade de questionar o paradigma do modo de produção capitalista. Enquanto a conferência oficial maquia a catástrofe com o verniz da “economia verde”, a Cúpula folcloriza a resistência, convertendo-a em capital simbólico para o mesmo sistema que pretende desafiar. Ambas operam na lógica do mercado, e ambas são, em última análise, rituais de inação.
A verdadeira transição exigida pela crise civilizatória não será assinada em um tratado ou declarada em um fórum alternativo. Ela exige uma ruptura muito mais profunda: o abandono da fé no crescimento infinito e a adoção consciente de uma política da suficiência. O planejamento da produção pelos trabalhadores e a redução drástica do consumo energético não são opções entre outras, mas imperativos de sobrevivência.
A escolha real que se coloca não é entre combustíveis fósseis e energias “renováveis”, mas entre a acumulação de capital e a continuidade da vida. Enquanto nos distraímos discutindo a cor do bonde, ignoramos que o trilho leva ao mesmo abismo. O caminho de volta exige que desçamos do veículo e construamos um novo destino, um que não esteja à venda nas prateleiras do capitalismo verde.
Referências
- LOVEJOY, Thomas; NOBRE, Carlos. Amazon tipping point: last chance for action. Science Advances: 4 (2). Washington: 21 fev, 2018. DOI: 10.1126/sciadv.aat2340
- IEA. The Role of Critical Minerals in Clean Energy Transitions. International Energy Agency. Paris: 5 mai. de 2021.
- FEARNSIDE, Philip M. Environmental and Social Impacts of Hydroelectric Dams in Brazilian Amazonia: Implications for the Aluminum Industry. World Development: 77. jan. de 2016. DOI 10.1016/j.worlddev.2015.08.015
- Coletivo Nacional de Comunicação. Cúpula dos Povos leva resistência e justiça climática como contraponto à COP30. Movimento dos Atingidos por Barragens. 2 out. 2025.
- MOURA, Maurício. Por que a Inteligência Artificial é inimiga do clima. Livre Pensamento. 7 out. 2025.
- MOURA, Maurício. A inevitabilidade do viés no algoritmo: como Big Techs lucram com discriminação digital. Livre Pensamento. 1 ago. 2025.
- SPEZIA, Adi; LOURES, Hellen. COP30: Cimi defende demarcação de terras indígenas, denuncia falsas soluções e reivindica rupturas sistêmicas contra o colapso climático. Conselho Indigenista Missionário. 12 nov. 2025.
- CASTRO, Mariana. Povos tradicionais do Brasil e exterior cobram protagonismo na COP30 e na luta contra mudanças climáticas. Cúpula dos Povos. 31 mai. 2025.