O fascínio do curandeirismo

CurandeirismoMesmo com os grandes avanços da ciência nas últimas décadas, a busca de pseudociências e curandeirismos continua na moda.

Desde os charlatanismos “tradicionais”, como o tarô e a quiromancia, até as novas pseudociências, como a Conscienciologia, ou as religiões travestidas de ciência, como a Cientologia, as pessoas continuam fascinadas pelo mundo espetacular das curas milagrosas. Agora, os curandeiros e charlatães ganham espaço até na Academia, como é o caso da Ontopsicologia (seus seguidores até abriram uma faculdade!).

Esse neo-obscurantismo conquista adeptos até entre os intelectuais que, teoricamente, deveriam ter uma visão mais crítica do mundo.

Neste texto, o psicólogo Raymundo de Lima analisa esse fenômeno. É interessante notar que mesmo o autor se deixa fascinar pelo curandeirismo, quando tenta “justificar” o charlatanismo da homeopatia com o argumento de que existem pacientes que se declaram “curados” (mesmo argumento que poderia ser usado para qualquer cura “espiritual” ou “mágica”).

Ninguém está imune a ser enganado e é mais importante do que nunca que a escola, os pais e a sociedade passem a formar cidadãos críticos e céticos. A responsabilidade é de todos.

Veja também outros artigos sobre pseudociências.


Ciência, pseudociência e o fascínio popular

Raymundo de Lima

Rádio, televisão e internet divulgam fórmulas milagrosas para tratar calvície, emagrecer, até para aumentar o tamanho do pênis. Técnicas bizarras ensinam a aplicar o próprio sangue [hemoterapia?], tomar a própria urina [urinoterapia?], viver apenas tomando luz [helioterapia?] etc.

Algumas igrejas entram em franca concorrência com a medicina e a psicologia, oferecendo curas ou milagres grátis para diversas enfermidades. Uma oferece águas milagrosas para todos os males, outra recomenda um mantra para zerar estresse, ou seja, usam sugestão e superstição, se aproveitam da boa fé ou ingenuidade popular. A prática de curandeirismo é crime previsto por lei, mas as pseudoterapias vão se disseminando na sociedade graças a ignorância do povo e a omissão dos poderes públicos responsáveis.

São pseudociências: parapsicologia, projeciologia, conscienciologia, criacionismo ou “intelligent desing”1, grafologia, quiromancia, tarô, meditação holística, mapa astral, numerologia, gnose, criptozoologia, esoterismo, ufologia, feng-shui, radiestesia, florais de Bach, reiki, aromaterapia, cromoterapia, cristalterapia, yoga, etc.

Embora a yoga seja uma pseudociência não a invalida de ser uma boa técnica de meditação, relaxamento e prevenção do estresse. A homeopatia seria uma protociência, porque mesmo não conseguindo comprovação de sua eficácia terapêutica em experimentos controlados da ciência convencional ela atrai muitos pacientes que se declaram
curados por seus medicamentos. O mesmo pode se pensar da fitoterapia, os chazinhos da sabedoria popular ou os xaropes produzidos pela indústria de produtos naturais.

Todavia, enquanto as descobertas científicas são cuidadosas na divulgação; e quanto mais sofisticadas as pesquisas mais seus produtos tornam-se inacessíveis para a população carente, as “descobertas” da pseudociência facilmente são aceitas pela sociedade, no fundo, porque o seu resultado final desperta solução mágica de cura rápida e barata, para o imaginário popular. Assim, para um desenganado ou desesperado ‘vale tudo’ para se sentir curado, até mesmo uma ilusão pseudocientífica ou auto-engano
religioso.

Uma rápida olhada na história, constatamos que as vacinas e os tratamentos médicos elevaram a média de idade de 40 anos para 70 ou mais. Mas parece que as pessoas comuns acreditam mais nos milagres da pseudociência facilmente acessível pela impressa popular do que as descobertas verdadeiramente científicas cujo discurso científico é marcado pelo hermetismo, prudência e ceticismo.

Apesar dessa dificuldade, é possível que uma pandemia de gripe faça os governos procurarem orientação científica visando prevenção e tratamento numa linguagem direta e simples, como: devemos lavar as mãos, evitar aglomerações, observar os sintomas, etc. Mas milhares de pessoas não descartam uma fezinha na pseudociência, para explicar as causas ou divulgar uma prevenção infalível produzido por anônimos da pseudociência: comer ou beber isso ou aquilo, usar um protetor (patuá) etc.

As pseudoterapias têm o poder de despertar fascínio popular, eliminam dúvidas, sustentam esperanças, prometem curas rápidas e milagrosas. Já as terapias baseadas nos pressupostos da ciência trabalham com probabilidade de cura, ou o tratamento é uma possibilidade de a doença ser controlada, não curada. No campo teórico, a ciência busca explicações dentro dos critérios de racionalidade que geralmente frustram os ingênuos e dogmáticos. Principalmente, depois dos efeitos colaterais da ciência aplicada
(talidomida, acidentes nucleares, danos ao meio ambiente etc.), hoje existe desconfiança saudável em relação à ciência. Afinal, a ciência não resolve a ‘questão humana’.

Ainda, a ciência não é neutra e os cientistas não estão isentos de interesses pessoais, políticos e ideológicos, conforme as análises de Thomas Khun, Pierre Bourdieu e Bruno
Latour.

Parece que a pseudociência sustenta uma aura divina, como que fosse uma produção transcendental. Já a ciência não esconde ser uma produção demasiadamente humana, e como tal sua mira na objetividade é mais um otimismo epistêmico do que uma realidade de fato do fazer ciência.

Contudo, sem ser simpático ao neopositivismo, parece consenso que a ciência é o conhecimento que melhor sustenta confiabilidade e credibilidade, pelo menos pela população mais esclarecida. Curiosamente, os Estados Unidos, que possuem uma ciência e tecnologia mais avançada do mundo, 95% da população é “cientificamente
analfabeta”, observa Carl Sagan (1996).

O autor observa ainda que o norteamericano médio acredita em astrologia, numerologia, grafologia, borra de café, Nostradamus, técnica advinhatória com pirâmides, cristais, terapia de vida passada, cirurgia espiritual, ufologia e extraterrestres (que vivem entre nós disfarçados de gente), etc. No Brasil, também a pseudociência atrai um grande número de farsantes e espertos explorando milhares de ingênuos e incautos, apesar de existir uma lei…

Há uma linha demarcatória, simples, entre ambas: enquanto a pseudociência foge de participar das discussões em fóruns adequados e de testar suas hipóteses, a ciência se oferece sempre para discussão em fóruns adequados. Seu processo de investigação é sistemático, visando explicar/compreender os fenômenos naturais, sociais,  psicológicos. Ela “é mais do que um corpo de conhecimentos, é um modo de pensar” (SAGAN, op.cit.). Uma verdadeira ciência deve estar sempre aberta a novas investigações e debates, enquanto que as pseudociências tendem a afirmações marcadas por certezas ou dogmas. Ainda, as teorias genuinamente científicas são aproximações da verdade, e jamais “a” verdade. Não existem certezas absolutas na ciência, mas discussão sistemática e pluralista sobre problemas reais ou abstratos. Esse simples critério demarcatório de abertura ao debate e a capacidade de argumentação de demonstração, que faz lembrar o critério demarcatório de Popper, também nos leva a situar algumas teorias humanas como “menos ciência e mais ideologia” (LAKATOS, ver nas referências).

Atualmente a pseudociência vem invadindo as escolas e universidades, sobretudo as particulares, com cursos de extensão, palestras, e até reivindicam status de ciência nos currículos convencionais dos cursos de formação. É o caso do movimento do “design inteligente”, que quer ser incluído no campo científico e no currículo de Biologia. Na verdade o DI não passa de convicções subjetivas baseadas na tradicional fé religiosa. No Brasil, os professores não estão bem preparados para ensinar os conhecimentos científicos, e livros didáticos2 são adotados cujo conteúdo confunde ciência e pseudociência.

Atentar apenas para a formação com senso crítico parece-nos insuficiente para formar uma nova geração de docentes, mais prudentes e pautados nas discussões epistemológicas no ato de ensinar conteúdos programáticos.


Notas

  1. Ver na Wikipédia: http://pt.wikipedia.org/wiki/Design_inteligente
  2. Ler texto-conferência publicado no JC-Online (Jornal da Ciência), da SBPC, n.3455, de 22/02/2008. Tb. publicado no livro organizado pelo autor (NEVES E PARRILHA SILVA, 2008).

Referências

COLUCCI JR, J. A arte de ter razão.

GOMES, W. Falsas ciências e teorias pseudocientíficas. Disponível em http://www.cin.ufpe.br/~if676/aulas_metodo/falsasciencias.docx

LAKATOS, I. Ciência e pseudociência. Disponível em http://www.aartedepensar.com/leit_lakatos.html

NEVES, M.C.D; PARRILHA DA SILVA, J.A. Evoluções e revoluções: o mundo em transição. Maringá: Massoni, 2008, p. 289-287.

REIS, Widson P. A pseudociência nas universidades brasileiras. Disponível em: http://pt.scribd.com/doc/2345567/A-pseudociencia-nas-universidades

SAGAN, C. O mundo assombrado pelos demônios. A ciência vista como vela no escuro. São Paulo: C. Letras, 1996. Disponível em http://www.filosofia.art.br/download/filosofia/Carl_Sagan_O_Mundo_Assombrado_pelos_Demonios.pdf


RAYMUNDO DE LIMA é Doutor em Educação (USP) e docente no Departamento de Fundamentos da Educação da Universidade Estadual de Maringá.


Publicado originalmente na Revista Espaço Acadêmico (REA) nº 106 (março de 2010).

A REA adota a política copyleft, isto é, após a publicação é livre a reprodução para fins não comerciais, desde que o autor e a fonte sejam citados e esta nota seja incluída.

Revisão: Maurício Sauerbronn de Moura

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