A ciência não tem verdades absolutas. Essa é uma máxima muitas vezes esquecida tanto pelos defensores do método científico quanto pelos dogmáticos e religiosos anti-científicos.
A teoria do Big Bang, embora dominante tanto na cosmologia quanto no imaginário popular, não é a única teoria científica para o Universo. Há alguns meses publiquei aqui um texto do físico de plasmas Eric J. Lerner, autor do livro O Big Bang Nunca Ocorreu. Desta vez publico um trecho do livro Do Big Bang ao Universo Eterno, do físico brasileiro Mário Novello.
Novello é doutor em Física pela Universidade de Genebra, doutor Honoris Causa pela Universidade de Lyon, Professor Emérito do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas. Foi criador do grupo de Cosmologia e Gravitação no CBPF (1976) e do Instituto de Cosmologia Relatividade e Astrofísica (2003).
Neste livro, Novello expõe de maneira simples um apanhado de modelos cosmológicos, inclusive do Big Bang, enquanto desenvolve os conceitos da Teoria da Relatividade, de Einstein. O trecho escolhido é o prólogo do livro.
Em dezembro de 2007, concluí, com meu colaborador Santiago Bergliaffa, a redação de um artigo que uma revista científica me convidara a escrever, e que nos ocupou intensamente aquele ano todo. Tratava-se de analisar de modo crítico as diferentes propostas que os cosmólogos produziram, ao longo do século XX até os nossos dias, envolvendo modelos cosmológicos não singulares, isto é, modelos que se opõem frontalmente ao antigo cenário-padrão chamado big bang.
O resultado dessa análise – em que examinamos mais de 400 trabalhos científicos – foi um artigo longo, de mais de 100 páginas, que ganhou o título de “Bouncing cosmologies”1. Quando, no final do mesmo ano, enviamos o texto para a prestigiosa revista Physics Report, nos demos conta de que aquele era um momento simbólico do fim do paradigma paralisante do modelo explosivo. Com efeito, era a primeira vez, desde os anos 1970 – data que marca o começo da hegemonia do cenário da grande explosão -, que uma revista científica de tão elevada reputação na comunidade internacional da ciência abria tamanho espaço para examinar a questão crucial da cosmologia, a origem do Universo, fora do contexto simplista do cenário big bang2.
Nesse cenário, o momento singular, caracterizado por uma condensação máxima pela qual o Universo passou há uns poucos bilhões de anos, é identificado ao “começo do Universo” e não permite análise ulterior. Em oposição, no cenário não singular, o Universo não tem um “começo” separado de nós por um tempo finito em nosso passado; aquele momento de condensação máxima nada mais é que um momento de passagem de uma fase anterior para a atual fase de expansão.
No modelo cosmológico do Universo eterno, nesses cenários não singulares, dá-se um passo a mais, ao procurar uma explicação racional para a expansão do volume total do Universo. Dito de outro modo, trata-se de retirar o limite que os cientistas se impuseram arbitrariamente, no século XX, rumo à análise do que teria ocorrido antes do momento de máxima condensação, produzindo aquele estado único, especial, a partir do qual o volume total do espaço aumentaria com o passar do tempo cósmico, exibindo uma expansão.
O presente livro, baseado no artigo de 2007 e em uma série de conferências que realizei ao longo de 2007 e 2008, introduz o leitor não especialista à seguinte questão: o Universo teve um começo em um tempo finito, ou ele é eterno?
Neste momento, talvez fosse relevante abrir um pequeno parêntese para um comentário pessoal que me parece bastante significativo e exemplifica muito bem por que se manteve durante tanto tempo a exagerada hegemonia de que desfrutou o cenário big bang.
Quando, há uma década, eu estava passando um período de colaboração com cientistas da Universidade de Lyon, na França, fui convidado pelo Conselho Cultural de Villeurbane – região onde está situada aquela Universidade – a apresentar uma conferência para o grande público sobre os avanços da cosmologia. Ao conversar com alguns professores sobre a palestra, comentei que iria apresentar as duas alternativas que os cientistas haviam elaborado para descrever as origens do Universo: as propostas do big bang e do Universo eterno.
Um professor da Universidade de Lyon fez então um comentário que me espantou enormemente. Embora conhecendo minhas críticas a este modelo, disse que eu deveria falar apenas do big bang, acrescentando que não caberia enfatizar as dificuldades de princípio que ele possui. “Para as pessoas que não são especialistas em cosmologia, e mesmo para cientistas de outras áreas”, continuou, “não se devem explicitar dúvidas que os cosmólogos possam ter sobre a evolução do Universo. Segundo ele, isso só contribuiria para reduzir o status dessa ciência, abrindo espaço para o aparecimento de explicações de caráter não científico e até transcendentais.” Acrescentou que isso se devia à particularidade da cosmologia e à grandiosidade do objeto de seu estudo, estas centenas de bilhões de galáxias e estrelas que podemos observar no Universo.
Respondi-lhe que aquilo ia contra meu propósito de ensinar, entendendo que esta função tem por principal atributo pôr em dúvida todo conhecimento, incluindo aquele que se pretende isento de críticas. E também que vivíamos uma situação de transição, na qual o antigo modelo big bang perdia seu caráter absolutista e hegemônico – o que efetivamente aconteceu na década seguinte. Ademais, acrescentei, deveríamos ter todo cuidado ao deixar sair dos laboratórios e passar para a sociedade informações que os cientistas estão longe de poder demonstrar com toda certeza. Mais ainda: como essas verdades provisórias alcançam imediatamente as páginas dos jornais cotidianos e das revistas não especializadas, devemos, logo que possível, esclarecer e enfatizar essa condição efêmera, com mais razão ainda quando se trata de questões envolvendo tema tão sensível quanto o “começo de tudo”.
Embora o problema da “origem do Universo” não tenha, para os cosmólogos, importância primordial – pois é um dentre vários com que se defrontam na produção de uma explicação racional a respeito dos diversos fenômenos observados no Universo -, para a maioria das pessoas ele apresenta um interesse fantasticamente grande, que vai muito além da simples curiosidade eventual e passageira. A razão para isso tem a mesma origem daquela que impulsionou os povos do passado, ao longo da história de todas as civilizações, a produzir mitos cosmogônicos sobre a criação.
O estudo desses diferentes modos de conceber, nas civilizações antigas, de onde e como surgiu tudo que existe possui uma bibliografia vasta e bastante específica3. Quanto à forma científica de organizar e divulgar essa questão, a quase totalidade de textos de fácil acesso se limita à versão da criação explosiva. Isso seria aceitável se ela fosse validada pela observação, sem que houvesse qualquer explicação alternativa. Mas, ao contrário, como veremos, ela é precisamente o modelo que inibe uma história racional completa do Universo.
Nas últimas três décadas, houve uma exagerada exposição e exaltação do big bang. Por outro lado, existe um desconhecimento quase completo a respeito do cenário do Universo eterno. Este livro pretende equilibrar a situação. Em alguns capítulos, acrescentei comentários sobre assuntos abordados no texto. No final do livro, incluí um glossário com o intuito de complementar informações e reunir definições simplificadas de termos técnicos4.
Antes de começarmos nossa caminhada, porém, devo fazer um comentário adicional. Nos últimos anos, por diferentes razões, a cosmologia tem estado permanentemente sob os holofotes da mídia, seja na imprensa, na televisão ou mesmo em discos com pactos. É fácil constatar que muitas das informações referentes ao big bang são produzidas sem que se obedeça ao compromisso fundamental que qualquer divulgador da ciência – seja ele cientista ou não – deve cumprir. Como a divulgação científica se destina, na maior parte das vezes, a não especialistas – que não possuem as ferramentas formais para avaliar criticamente o que lhes é apresentado -, toda afirmação que se faz e que não teve ainda sua veracidade confirmada pelos métodos convencionais, absolutos e universais da ciência deve exibir para o ouvinte e/ou o leitor sua condição limitada ou provisória. Caso contrário, como já comentei, esse uso indevido do status elevado que a ciência possui nada mais será que uma “máscara atrás da qual se esconde um poder político que não ousa se declarar como tal”5
- O termo inglês bouncing poderia ser traduzido por “ricochete”.
- Neste livro, não me deterei na apresentação dos detalhes técnicos que sustentam meus comentários. O leitor mais dedicado, e cujo interesse se prolonga até as análises formais específicas sobre as quais os argumentos aqui reunidos se baseiam, pode consultar o artigo mencionado.
- Talvez um dos mais interessantes seja o livro La naissance du monde, que contém um relato bastante ocmpleto sobre as cosmologias dos principais povos da Antiguidade. Ver E. Cotta Mello, “Estudo sobre as cosmologias nas civilizações antigas”.
- No Apêndice II apresenta-se uma cronologia da cosmologia, incluindo os momentos simbólicos mais importantes desta ciência.
- M. Novello, Cosmos et contexte.