Maurício Moura
O ano de 2025 aprofunda uma crise silenciosa: a conversão da educação em mercadoria digital. Trata-se de uma transformação estrutural que substitui o projeto pedagógico pelo algoritmo, a formação crítica por pacotes de habilidades e o espaço público de aprendizagem por plataformas controladas por conglomerados internacionais.
Este artigo busca analisar essa relação e propor soluções para a qualidade da educação no Brasil.
Do quadro negro ao algoritmo
A Constituição de 1988 consagrou a educação como direito social, mas três décadas depois assistimos à sua reconversão em commodity. O Programa de Inovação Educação Conectada, lançado pelo MEC em 2017, abriu as portas para contratos milionários com empresas privadas sob o discurso da modernização. Dados do Mapeamento Edtech 2018 mostram que 61% das 364 empresas mapeadas dedicam-se à produção de conteúdo, enquanto 19% atuam na coleta de dados e processos1. Apesar da distribuição geográfica – presentes em 25 estados –, sua lógica é uniforme: substituir mediação pedagógica por pacotes digitais.
“Democratização” ou controle?
As EdTechs (empresas de tecnologia para educação) propagandeiam “acesso universal à educação de qualidade”. Por outro lado, a migração da educação para “plataformas” tem gerado consequências sérias:
- Precariedade docente: Professores transformados em tarefeiros, remunerados por aula gravada, desprovidos de vínculos trabalhistas;
- Vigilância pedagógica: Plataformas como Google Classroom convertem interações educativas em dados comercializáveis, expandindo o modelo de negócios de empresas como Meta e Alphabet;
- Destruição física: Entre 2021-2024, 1.200 escolas rurais foram fechadas no Brasil sob alegação de “eficiência digital”, segregando comunidades sem infraestrutura de conectividade;
- Fuga de capital: apensar do grande número de EdTechs no Brasil, a arrasadora maioria do dinheiro investido na área vai para grandes corporações de tecnologia (Big Techs), como o Google e a Microsoft. Em outras palavras, ao invés de gerar empregos ou divisas para os brasileiros, alimenta os fundos financeiros no exterior.
A plataformização representa o estágio mais avançado da mercantilização educacional, onde estudantes viram inputs para mineração de dados e treinamento de Inteligência Artificial. Além disso, os professores são alijados da sala de aula, eliminando a relação de confiança pedagógica entre professores e estudantes. Isso extermina a liberdade de cátedra, transformando o professor em um mero operador descartável.
Casos concretos no Brasil
A parceria São Paulo-Google (2021) inaugurou um modelo perverso: monitoramento comportamental de alunos via plataformas “gratuitas”, terceirização do currículo e transferência de dados sensíveis para empresas estrangeiras. O Cadastro Anual Simplificado (MEC) e o Censo Escolar, apesar de ferramentas de gestão pública, são utilizados por recrutadores globais:
- Escolas brasileiras no Japão (38 instituições, 4 mil alunos) alimentam bancos de dados de empresas como AG Immigration, que utilizam esses dados para mapear tendências e perfis de imigrantes;
- Polos EAD na Europa fornecem dados para headhunters de setores estratégicos (TI, saúde, logística);
- 11 mil profissionais de alta qualificação emigraram em 2023 usando dados acadêmicos validados por sistemas privados 2.
A Resolução CNE/CEB nº 1/2025 demonstra a fragilidade regulatória: permite compartilhamento de dados sem consentimento explícito, convertendo diplomas em moeda de troca no mercado transnacional de talentos.
Impactos cognitivos
A plataformização da educação, com padronização excessiva de conteúdo e secundarização do papel do professor (com inerente cerceamento de liberdade de cátedra) tem gerado uma série de reações adversas mensuráveis na capacidade do indivíduo de capturar e interagir com o mundo à sua volta.
A hiperconectividade inerente às plataformas educacionais fragmenta a atenção prolongada. Isso reduz a capacidade de manter a atenção e o foco contínuo em 40% comparado a métodos tradicionais3. Estudantes passaram a priorizar o acesso rápido à informação em detrimento da retenção de longo prazo, comprometendo a consolidação da memória4.
Erosão do pensamento crítico e criativo
É consenso entre pesquisadores que o conhecimento prévio é a âncora para novas informações, ou seja, os exemplos familiares é que criam pontes entre o conhecido e o desconhecido e facilitam a assimilação e a acomodação de conceitos abstratos. Partir da realidade do estudante eleva em até 40% a retenção de conceitos complexos5.
O uso de plataformas e a padronização forçada das aulas vão na contra-mão de tudo o que se sabe sobre educação, já que abordam os temas sempre da mesma forma, sem ter a capacidade de adequar o conteúdo à realidade do estudante. Além disso, as plataformas direcionam percursos de aprendizagem através de lógicas preditivas, limitando a exploração intelectual não linear6.
Para possibilitar a correção automática de provas e exercícios (e diminuir os custos, claro), as plataformas priorizam fortemente questões de múltipla escolha, restringindo espaços para qualquer argumentação complexa.
O resultado é que os estudantes desenvolvem cada vez menos as capacidades de pesquisa, leitura e escrita, além de perderem a capacidade de autoavaliação.
Alternativas para a soberania
Romper com essa lógica exige a nacionalização dos projetos tecnológicos, em uma perspectiva de soberania nacional.
Plataformas livres
Softwares Livres são programas de computador baseados em quatro liberdades: usar, estudar, modificar e distribuir, ou seja, são programas que tem o código fonte público, o que permite que qualquer pessoa avalie o que e como ele faz as coisas (incluindo como ele trata os dados). Permite também que pessoas e grupos proponham e implementem melhorias nesse código.
As universidades públicas devem adotar massivamente sistemas baseados nesse conceito, fomentando grupos internos que desenvolvam melhorias nesses sistemas. As vantagens dessa abordagem não são poucas:
- Vinculam bolsas de iniciação científica a um trabalho com consequências reais, preparando os estudantes para a realidade do mercado de trabalho;
- Evita dependência de fornecedores, colocando os dados e os processos inteiramente sob os interesses nacionais e pedagógicos;
- Aumenta significativamente a segurança, já que a forma como os dados são guardados e tratados é pública, além do que qualquer pessoa pode identificar e corrigir erros;
- Permite a adaptação livre do código para novas necessidades, focando em inovação;
- Incentiva o aprendizado, já que traz o estudante e a comunidade acadêmica para perto do código, que pode ser usado, inclusive, como ferramenta pedagógica.
Infraestrutura pública
A profunda dependência do sistema de educação brasileiro de fornecedores privados é um risco muito sério à nossa soberania, à qualidade da educação e à segurança dos estudantes e professores. A saída para isso é diminuir essa dependência, investindo na construção de uma infraestrutura pública. Para alcançar isso, é preciso investir na construção de software básico, como sistemas operacionais e bancos de dados.
As experiências ligadas à Universidade da Califórnia em Berkeley, mostram o caminho: criar um sistema operacional sob controle das universidades, criando bolsas de iniciação científica, mestrado e doutorado para estudantes que quiserem contribuir com ele. A ligação desse sistema operacional a grupos de pesquisa acadêmicos dá a ele um potencial de inovação que nenhuma empresa privada poderia ter.
Um SGBD (Sistema Gerenciador de Banco de Dados) nos mesmos moldes também traria nossos dados para controle público e não para servir aos interesses do capital financeiro internacional. No mesmo sentido vai a construção de datacenter públicos, também ligados à Academia.
Conclusão
A plataformização da educação consolida a transformação do saber em mercadoria sob controle algorítmico. Esse processo, apresentado como democratização, aprofunda na realidade a precarização do trabalho docente e a alienação discente. Professores são reduzidos a operadores de sistemas, perdendo autonomia pedagógica e vínculos estáveis, enquanto estudantes se tornam fontes de dados para mineração preditiva das Big Techs.
A dependência tecnológica gera um duplo saque: recursos públicos financiam conglomerados estrangeiros, e dados sensíveis alimentam mecanismos de vigilância e recrutamento global. Escolas fechadas em nome da “eficiência digital” segregam comunidades e diplomas convertem-se em moeda de troca num mercado transnacional de talentos.
Romperemos essa lógica não com soluções tecnocráticas, mas pela reapropriação coletiva dos meios de produção do conhecimento pelas instituições acadêmicas e comunidade escolar.
A alternativa é clara: ou a educação reproduz o capitalismo de vigilância ou se reconstrói como práxis de libertação.
Leia também:
– Educação sob ataque sistemático
– Aprender a aprender: um slogan para a ignorância
Notas e referências
- CENTRO DE INOVAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO BRASILEIRA. Mapeamento Edtech 2018. CIEB. São Paulo: 15 nov. 2018. ↩︎
- INEP. Relatório de Mobilidade Acadêmica Internacional 2025. Brasília: 5 fev. 2025. ↩︎
- SPARROW, Betsy. et al. Google Effects on Memory: Cognitive Consequences of Having Information at Our Fingertips. Science, v.333, n.6043, 2011. DOI 10.1126/science.1207745. ↩︎
- SELWYN, N. Education in a Digital World: Global Perspectives on Technology and Education. Routledge, ago. 2012. DOI 10.4324/9780203108178. ↩︎
- XU, K. M. et al. *A growth mindset lowers perceived cognitive load and improves learning: Integrating motivation to cognitive load.Journal of Educational Psychology, 113(6), 1177–1191. 2021. DOI 10.1037/edu0000631. ↩︎
- ABÍLIO, Ludmila. Open-access Uberização e plataformização do trabalho no Brasil: conceitos, processos e formas. Sociologias 23 (57), mai. 2021. DOI 10.1590/15174522-116484. ↩︎