Maurício Moura
O ressurgimento global de movimentos autoritários no século XXI, paralelamente à crise dos paradigmas racionais, demanda análise das relações entre pós-modernismo e o que Umberto Eco denominou “fascismo eterno” 1. Este artigo examina como elementos do fascismo histórico ressurgem em discursos que instrumentalizam críticas pós-modernas à razão e à verdade objetiva. Partindo da premissa de Jameson 2 sobre a crise estrutural do capitalismo em sua etapa imperialista, argumenta-se que ambas as formas de consciência social emergem como respostas mediadas por esta crise sistêmica. A tese central sustenta que o esvaziamento das críticas pós-modernas de seu potencial emancipatório permite sua cooptação por projetos autoritários, criando sínteses perigosas no campo discursivo contemporâneo.
Marco teórico
A análise das relações entre pós-modernismo e autoritarismo contemporâneo exige articulação de três eixos conceituais interligados: as características estruturais do “fascismo eterno”, as premissas filosóficas das vertentes radicais do pós-modernismo e sua mediação histórica pelo capitalismo tardio. Este tripé teórico permite examinar como críticas epistemológicas pós-modernas são instrumentalizadas por projetos autoritários sob as condições materiais específicas do capitalismo em sua fase imperialista, configurando o que Jameson 2 denomina “lógica cultural do capitalismo tardio”.
As características do fascismo eterno
Umberto Eco 1 identifica características permanentes do fascismo, destacando quatro fundamentais para esta análise: “rejeição do modernismo e da razão”, “culto à ação pela ação”, “intolerância à divergência” e “medo da diferença como eixo unificador”. Este “fascismo eterno” não se restringe a regimes históricos, mas constitui padrão discursivo recorrente em contextos de crise orgânica.
Correntes do pós-modernismo
O pós-modernismo caracteriza-se pela incredulidade frente às explicações universais da modernidade 3. Foucault 4 complementa esta perspectiva ao demonstrar como o poder se exerce através de regimes discursivos. Anderson 5 observa que tal pluralidade epistemológica, ao negar fundamentos universais, cria condições para relativismos radicais.
Mediação histórica
Jameson 2 situa o pós-modernismo como “lógica cultural do capitalismo tardio”, onde a mercantilização atinge a esfera simbólica. Wendy Brown 6 demonstra como o capitalismo, em sua fase imperialista, transforma cidadãos em empreendedores, corroendo bases democráticas. Tufekci 7 analisa as redes digitais como infraestruturas que aceleram tanto a crítica pós-moderna quanto o autoritarismo.
Análise comparativa
Para evitar falsas simetrias entre projetos políticos distintos, adota-se uma matriz analítica dialética que examina pontos de convergência funcional nas estruturas discursivas. Este método permite identificar como elementos aparentemente antagônicos (o relativismo pós-moderno e o dogmatismo fascista) desenvolvem ressonâncias operacionais mediadas pelo imperialismo 8. A análise focaliza quatro dimensões críticas onde se observam apropriações seletivas e sínteses perversas: rejeição da racionalidade, anti-intelectualismo, criminalização do dissenso e mecanismos de convergência tecnológica.
Rejeição da razão e objetividade
A rejeição da razão iluminista constitui ponto nodal de convergência entre o fascismo eterno e vertentes radicais do pós-modernismo, embora com fundamentos distintos. O fascismo histórico opera através de um irracionalismo programático 1 que substitui a argumentação lógica por apelos emocionais ao mito e à tradição. Esta rejeição manifesta-se como culto à ação direta desvinculada de reflexão crítica, onde o “sangue” prevalece sobre o “intelecto”. Paralelamente, o pós-modernismo desenvolve uma crítica epistemológica à razão instrumental, seguindo a tradição da Dialética do Esclarecimento de Adorno e Horkheimer, que denunciavam a racionalidade técnica como mecanismo de dominação. Lyotard 3 radicaliza esta posição ao declarar a “morte das metanarrativas” científicas, enquanto Foucault 4 desvela como regimes de verdade servem a dispositivos de poder.
A síntese perversa emerge quando o relativismo epistemológico pós-moderno é esvaziado de seu potencial crítico e instrumentalizado para legitimar o irracionalismo autoritário. O negacionismo climático exemplifica esta convergência: apropria-se do constructo foucaultiano sobre a “política da verdade” para equiparar consenso científico a “dogmatismo ideológico”, enquanto mobiliza mitos emocionais fascistas sobre “liberdades ameaçadas” por elites globais. Esta operação transforma a crítica legítima à ciência (como análise de seus vínculos com complexos industriais-militares) em arma contra a própria noção de objetividade 9.
Jameson 2 identifica nesta dinâmica a lógica cultural da fase imperialista do Capitalismo, onde a mercantilização do discurso 6 converte o debate epistemológico em produto de consumo. Plataformas digitais capitalizam a polarização entre “especialistas” e “leigos”, transformando a desconfiança na razão em mercadoria na economia de atenção 10. O resultado é um terreno fértil para o “relativismo de mercado” 5: a equivalência artificial entre evidências científicas e opiniões infundadas, onde ambas se tornam “narrativas válidas” em um suposto mercado livre de ideias.
Esta convergência opera uma dupla alienação: primeiro, ao cooptar a crítica pós-moderna aos sistemas epistemológicos para fins reacionários; segundo, ao transformar a crítica emancipatória à razão instrumental em ferramenta de obscurantismo político. Quando “tudo é narrativa”, perde-se o critério ético para distinguir entre verdades factuais e propaganda autoritária, minando as bases cognitivas da resistência democrática 11.
Anti-intelectualismo e cultura da ação
O culto à ação direta e a deslegitimação da erudição constituem terreno fértil para convergências operacionais entre fascismo eterno e vertentes radicais do pós-modernismo. Eco 1 identifica no fascismo histórico a glorificação da “ação pela ação”, onde a violência é estetizada como expressão política autêntica, desprezando a mediação intelectual. Esta postura manifesta-se como rejeição visceral à deliberação racional, substituída pela imediatez performática. Paralelamente, o pós-moderno radical, através da crítica foucaultiana dos regimes de verdade e do ceticismo lyotardiano sobre teorias científicas, mina os fundamentos da autoridade epistêmica. Esta crítica, quando radicalizada, converte-se em ferramenta para equiparar conhecimento especializado a “mera opinião” 9.
A síntese contemporânea emerge quando o relativismo epistemológico é instrumentalizado para criar um anti-intelectualismo operacional: discursos autoritários apropriam-se seletivamente da crítica pós-moderna às instituições científicas para desacreditar consensos inconvenientes, enquanto mantêm dogmatismos convenientes. Este mecanismo é acelerado pela economia de plataforma 10, onde algoritmos transformam debates complexos em espetáculos binários, premiando simplificações emocionais sobre análises com nuances. As redes sociais convertem a desconfiança nos estudiosos e especialistas em capital político usado como moeda de troca, criando ecossistemas onde “teóricos da conspiração” adquirem mesma visibilidade que especialistas 7.
Os ataques às universidades brasileiras no início da década de 2020 exemplificam esta convergência: sob retórica pós-moderna de “doutrinação ideológica” 12, desmontam-se sistemas de avaliação educacional como o INEP, substituindo critérios técnicos por ações performáticas (CPIs espetaculares). Como analisa Brown 6, este processo representa a mercantilização final do conhecimento, onde a deslegitimação da produção intelectual pública abre espaço para sua privatização. O resultado é a erosão dos pilares cognitivos da democracia, transformando a esfera pública em arena onde fatos cedem à força bruta do afeto tribalizado.
Dissenso como traição
A criminalização do dissenso constitui característica nuclear do “fascismo eterno” que encontra ressonâncias preocupantes em dinâmicas contemporâneas mediadas por instrumentalizações pós-modernas. Eco 1 identifica na supressão fascista do debate a transformação da discordância em “traição”, mecanismo operacionalizado através de aparelhos estatais que eliminam fisicamente opositores. Paralelamente, vertentes radicais do pós-modernismo, ao enfatizarem a natureza política de todo discurso 4, geram práticas de silenciamento simbólico onde vozes dissidentes são enquadradas como “violências epistêmicas”. Esta convergência não equivale a identidade moral entre projetos, mas revela funcionalidades comuns na erosão do espaço dialético.
A mediação neoliberal 6 transforma esta dinâmica através de mecanismos institucionais sofisticados: leis que criminalizam críticas sob alegações de “assédio ideológico” convertem instrumentos legais em armas de silenciamento. No Brasil, processos judiciais contra pesquisadores 13 exemplificam como a retórica pós-moderna da “violência discursiva” é apropriada para judicializar conflitos políticos. Como observa Traverso 8, tais mecanismos operam uma perversão semântica: reivindicam “defesa da liberdade” enquanto restringem o contraditório, ecoando a lógica fascista que associava dissidência a doença social.
Os ataques ao INEP revelam a síntese operacional: CPIs espetaculares deslegitimam avaliações educacionais mediante acusações de “doutrinação” 12, utilizando linguagem pós-moderna sobre “narrativas hegemônicas” para justificar perseguição institucional. Esta estratégia articula três vetores:
- Simbolização do inimigo: pesquisadores como “traidores da pátria” (ressonância fascista)
- Judicialização do debate: processos por “danos morais” contra acadêmicos 14
- Estruturalidade neoliberal: desmonte de órgãos públicos para mercantilização da educação 6
A plataformização 7 intensifica esta dinâmica: algoritmos convertem o dissenso em “engajamento rentável”, onde campanhas de assédio digital contra críticos geram lucro através da economia de atenção. O resultado é uma privatização da censura: grupos organizados financiam ações judiciais estratégicas contra opositores, transformando o silenciamento em moeda de troca 10. Esta configuração supera a dicotomia estado/sociedade civil: sob o capitalismo imperialista, a supressão do debate não exige campos de concentração, mas advogados, robôs e CPIs midiáticas que transformam o dissenso em risco calculável para investidores.
Mecanismos dialéticos de convergência
A interação entre elementos do fascismo eterno e críticas pós-modernas não constitui mera coincidência histórica, mas processo mediado por mecanismos dialéticos específicos do capitalismo em sua fase imperialista. Estes operam através de apropriações seletivas e mediações tecnológicas que transformam ferramentas teóricas emancipatórias em armas reacionárias, conformando o que Jameson 2 denomina “lógica cultural” da pós-modernidade.
Apropriação seletiva
O esvaziamento do potencial crítico do pós-modernismo ocorre através de operações discursivas que isolam conceitos de seus contextos radicais. A máxima foucaultiana “a verdade é deste mundo” 4, originalmente destinada a desnaturalizar hierarquias de poder, é convertida em slogan para validar “verdades alternativas” conspiratórias. Este mecanismo explora contradições internas ao relativismo radical: ao negar qualquer fundamento ético-transcendental, o pós-modernismo mina sua capacidade de resistir à cooptação por projetos autoritários 11. O movimento antivacina ilustra esta dinâmica perversa: apropria-se da crítica pós-moderna às “narrativas médicas hegemônicas” para rejeitar evidências epidemiológicas, enquanto adota elementos fascistas como culto à pureza corporal e teorias de conspiração antissemitas sobre “Big Pharma”. Tal síntese não é acidental, mas produto da mercantilização neoliberal do discurso 6, onde teorias críticas são descontextualizadas e vendidas como produtos culturais desconectados de projetos emancipatórios.
Mediação tecnológica
As plataformas digitais funcionam como catalisadores desta convergência ao operar como “infraestruturas de acumulação” 10 que transformam conflitos epistemológicos em valor de troca. Algoritmos capitalizam a polarização entre “crítica à razão instrumental” (herdada da Escola de Frankfurt) e “irracionalismo fascista”, premiando conteúdos que radicalizam ambos os extremos 7. Esta lógica produz dois fenômenos interligados:
Mercantilização do ódio: campanhas de assédio digital contra especialistas geram engajamento rentável, transformando o anti-intelectualismo em mercadoria. Militâncias extremistas operam como “trabalho emocional não remunerado” que alimenta a acumulação de plataformas.
Fragmentação agonística: a arquitetura algorítmica fragmenta o espaço público em micro-realidades onde críticas pós-modernas à objetividade e dogmas fascistas coexistem sem contradição, como evidenciado em comunidades QAnon que mesclam referências a Baudrillard com simbolismo nazista.
Jameson 2 identifica nesta dinâmica o exemplo mais extremo de como ideias abstratas viram coisas concretas no modelo atual de capitalismo imperialista: a transformação da própria desconfiança na razão em força produtiva. Quando o ceticismo metanarrativo 3 é inserido nas engrenagens do capitalismo de vigilância, converte-se em combustível para máquinas de desinformação que servem a projetos autoritários. O resultado é uma dupla alienação: a crítica emancipatória é cooptada, enquanto o fascismo eterno readquire vigor através de novas tecnologias de mobilização afetiva.
Estudos de caso comparativos
Caso 1: Negacionismo científico
Discursos antivacina combinam relativismo pós-moderno (“verdades alternativas”) com elementos fascistas como teorias conspiratórias e rejeição de especialistas 9. Esta síntese opera como mecanismo de desmonte de instituições públicas.
Caso 2: Militâncias digitais
Grupos extremistas instrumentalizam críticas pós-modernas às instituições para promover agendas autoritárias, utilizando táticas de assédio coletivo que ecoam o “dissenso como traição”7. Tais militâncias funcionam como “trabalho emocional não remunerado” na economia de atenção.
Caso 3: Ataques a instituições educacionais no Brasil (2020-2022)
Os ataques ao INEP e universidades públicas exemplificam a síntese entre: o relativismo pós-moderno (deslegitimação da ciência como “doutrinação”), elementos ur-fascistas (criminalização do dissenso via CPIs espetaculares) e lógica neoliberal (desinvestimento como estratégia de mercantilização) 6
Documentam-se processos contra pesquisadores por “assédio ideológico”13 e cortes orçamentários baseados em discursos que vinculam universidades a “doutrinação”12, evidenciando a transformação da educação em mercadoria.
Convergências e contradições estruturais
A análise das ressonâncias operacionais entre pós-modernismo e fascismo eterno revela convergências profundas que transcendem coincidências históricas, radicando-se em contradições estruturais do capitalismo imperialista. A crise da modernidade como projeto emancipatório gera formas de consciência social que, embora antagônicas em intenção, compartilham negações fundamentais 2: rejeição da objetividade material, desprezo pela mediação racional e substituição da política por moralismos. Este capítulo examina quatro eixos onde tais convergências se manifestam com maior intensidade dialética, desvendando como, sob o imperialismo 6, críticas à razão iluminista são convertidas em combustível para novos autoritarismos. Simultaneamente, explora os paradoxos constitutivos desta relação, onde projetos supostamente “revolucionários” reproduzem hierarquias tradicionais, e o relativismo pós-moderno coexiste com dogmatismos identitários, configurando os “autoritarismos líquidos” da pós-democracia 8.
Moralismo como base
A negação da objetividade material permite que projetos políticos díspares substituam a análise concreta por moralismos abstratos, gerando convergências operacionais surpreendentes. O sionismo contemporâneo ilustra esta dinâmica ao transformar narrativas religiosas em justificativas morais para o colonialismo. A instrumentalização do Holocausto como capital moral inquestionável silencia críticas à ocupação palestina através de acusações de “antissemitismo”, enquanto discursos de Netanyahu constroem dualismos maniqueístas que equiparam resistência ao “mal absoluto”. Simultaneamente, vertentes sionistas apropriam-se de linguagem progressista para mascarar limpeza étnica sob retórica de “liberdade” (redwashing, pinkwashing, purplewashing).
Nos movimentos identitários, observa-se paralela transformação de lutas emancipatórias em moralismos desconectados da materialidade. A cooptação neoliberal reduziu o antirracismo a culpas subjetivas (“consciência branca”) e o feminismo a estética corporativa (“pinkwashing”), esvaziando reivindicações estruturais. Esta individualização da opressão gerou o paradoxo eleitoral onde parte dos trabalhadores negros e latinos apoiaram Trump (30% em 2020) e pobres brasileiros sustentaram Bolsonaro, revoltados contra “elites morais” urbanas.
A convergência entre sionismo e identitarismo manifesta-se em estratégias comuns de moralização. Ambos fetichizam a dor: o primeiro através de leis como o Estado-Nação judeu (2018) que imobilizam críticas; o segundo convertendo experiências pessoais em verdades intocáveis. Secularizam fundamentalismos, seja no messianismo dos colonatos israelenses ou no “empoderamento” neoliberal via consumo. Esta lógica permite cooptações reacionárias, como quando a direita global instrumentaliza críticas à “doutrinação de gênero” para promover agendas anti-imigração.
Tais projetos geram contradições insolúveis: o sionismo proclama laicidade enquanto usa símbolos bíblicos para ocupações; a esquerda identitária adota jargão acadêmico que aliena 58% da classe trabalhadora brasileira. O antídoto não é abandonar identidades, mas reenraizá-las na luta material contra a exploração: única forma de evitar que ferramentas emancipatórias se convertam em combustível para novos autoritarismos.
Espetacularização como método
A espetacularização política emerge como método convergente entre vertentes pós-modernas e autoritarismos contemporâneos, transformando a disputa racional em espetáculo emocional. Herdando do pós-moderno a estética do pastiche e da hiper-realidade 2, movimentos como o bolsonarismo e o trumpismo convertem a política em performance grotesca: lives caóticas, memes violentos e gestos simbólicos (armas, crucifixos) substituem programas concretos. Esta teatralização não é mero estilo, mas tecnologia de poder que explora a economia afetiva das redes 7, onde algoritmos recompensam exageros e simplificações. O caso do sionismo ilustra esta lógica: cerimônias de “unificação de Jerusalém” com tanques diante do Muro das Lamentações e narrativas messiânicas sobre “guerras defensivas” transformam ocupação colonial em drama sacralizado, apropriando-se da linguagem pós-moderna da simulação para criar realidades mediáticas onde violência aparece como ritual redentor.
Os movimentos identitários radicais não escapam desta dinâmica ao converterem lutas sociais em espetáculos de pureza moral. Performances de vitimização nas redes (como “call-out culture”) frequentemente privilegiam gestos simbólicos sobre transformação material, ecoando na “comodificação da resistência” 6. A Marcha das Mulheres contra Trump (2017), inicialmente projeto pluriclassista, foi cooptada por corporações que venderam “pink pussy hats” enquanto financiavam políticos antiaborto. Na Palestina, ONGs internacionais romantizam a resistência em documentários estetizados, esvaziando a luta anticolonial de conteúdo revolucionário. Esta convergência revela o núcleo perverso da espetacularização no imperialismo: a transformação da política em mercadoria afetiva 10, onde até o grito de oprimidos vira conteúdo viral rentável, e a revolução é substituída por hashtags que alimentam as mesmas plataformas que monetizam a opressão.
Individualismo radical
A celebração pós-moderna da subjetividade, inicialmente concebida como resistência aos discursos opressores 3, foi cooptada pelo neoliberalismo para fundamentar um individualismo radical que serve a projetos autoritários. A transformação do cidadão em homo economicus 6 converte direitos coletivos em escolhas de consumo: o “direito à saúde” torna-se “liberdade individual de não vacinar” e a justiça social reduz-se a “empreendedorismo identitário”. Esta lógica atinge seu paroxismo em discursos como o da “start-up nation” israelense, onde inovação tecnológica individualizada mascara apartheid estrutural, apresentando colonos como “empreendedores pioneiros” enquanto palestinos são enquadrados como obstáculos ao progresso. Na política identitária, manifesta-se como substituição da luta anticapitalista por demandas corporativas de representação, onde o privilégio de falar sobre opressão supera a transformação material das condições que a geram.
Os movimentos antivacina e libertários exemplificam a fusão perversa entre subjetivismo pós-moderno e autoritarismo: apropriam-se da linguagem da “autonomia corporal” 4 para negar saúde pública, enquanto adotam retórica fascista sobre “pureza biológica” e “soberania individual absoluta”. Paradoxalmente, este individualismo alimenta tribalismos: o bolsonarismo mobiliza o mito do “cidadão de bem” contra “comunistas corruptos” e o sionismo secular constrói o “judeu empreendedor” contra “árabes arcaicos”. Ao deslocar a emancipação para o plano subjetivo 11, perde-se a capacidade de identificar inimigos reais. O capital explora esta fragmentação para converter revolta em mercadoria, como quando corporações vendem camisetas “Black Lives Matter” produzidas por trabalho escravo. A emancipação autêntica exige superar este círculo vicioso, reinscrevendo as lutas identitárias no campo material 15.
Anticomunismo
O anticomunismo estrutura-se como reação ao marxismo, emergindo após a Revolução Russa e consolidando-se globalmente na Guerra Fria . Unindo espectros ideológicos díspares (conservadorismo, fascismo, liberalismo), sua base comum é a rejeição à abolição da propriedade privada e ao internacionalismo proletário. Transformado em ferramenta de desmaterialização do conflito social, instrumentaliza narrativas morais (“família tradicional”, “valores cristãos”) para ocultar contradições materiais, como evidenciado no macarthismo e nas ditaduras latino-americanas da Operação Condor.
Paradoxalmente, o anticomunismo se apropria de críticas pós-modernas ao universalismo, acusando o comunismo de “totalitarismo cultural”, para promover relativismos reacionários que equiparam evidências históricas a “narrativas ideológicas”, como no negacionismo do Gulag ou na estigmatização de movimentos sociais como “subversão” .
Contemporaneamente, manifesta-se em leis de exclusão política e no discurso liberal, onde legitima mercantilização de bens públicos e alianças com fundamentalismos religiosos, como no bolsonarismo e no sionismo, que usa retórica anticolonial para encobrir ocupações . Esta dinâmica revela seu núcleo dialético: enquanto denuncia utopias socialistas, reproduz mitos reacionários (“perigo vermelho”) que buscam substituir a emancipação material por uma “contrarrevolução espiritual”, preservando hierarquias de poder mediante pânico moral.
Paradoxos fundamentais
Os paradoxos que emergem na intersecção entre pós-modernismo e autoritarismo contemporâneo revelam contradições profundas da modernidade tardia. O primeiro deles é o paradoxo da revolução conservadora: movimentos que se autodeclaram “revolucionários” ou “antissistema” reproduzem estruturas tradicionais de poder. O bolsonarismo e o trumpismo, ao exaltarem mitos nacionais e hierarquias sociais pré-modernas, promovem uma nostalgia reacionária sob roupagem de insurgência, atualizando os “autoritarismos líquidos” 8. Essa dinâmica ecoa o paradoxo de Russell na teoria dos conjuntos: ao pretenderem transcender o sistema político vigente, tais movimentos acabam por reafirmar seus fundamentos excludentes, como evidenciado na manutenção de elites econômicas e na mercantilização de bens públicos 6.
Um segundo paradoxo reside na coexistência de relativismo radical e dogmatismo identitário. Enquanto vertentes extremas do pós-modernismo criticam a verdade científica 3, movimentos autoritários instrumentalizam esse relativismo para criar dogmas imunes à crítica, como a noção de “destino manifesto” no sionismo ou “família tradicional” no bolsonarismo. Essa contradição operacionaliza o que Eco1 identificou como “dogmatismo flexível” do fascismo eterno, onde princípios supostamente absolutos são adaptados convenientemente. O caso brasileiro ilustra esse mecanismo: discursos que negam a objetividade científica (“tudo é narrativa”) convivem com leis rígidas que criminalizam o “assédio ideológico” em universidades 13, a “esquizofrenia epistemológica do capitalismo tardio” 2.
O terceiro paradoxo articula-se na tensão entre elitismo e retórica anti-elite. A exaltação pós-moderna da diferença converte-se, em contextos neoliberais, em capital simbólico para novas elites identitárias, enquanto projetos autoritários mobilizam o ressentimento popular para fortalecer oligarquias. Como evidenciado na América Latina, 58% da classe trabalhadora rejeita a “lacração” como sendo um discurso elitista, expondo o abismo entre teorias decoloniais e lutas materiais por emprego e educação pública. Este paradoxo reflete o “navio de Teseu” filosófico: quando as críticas ao sistema são cooptadas pelo mercado 10, sua substância revolucionária é substituída peça por peça, gerando uma estrutura que mantém a forma da resistência mas esvazia seu conteúdo emancipatório, processo que Freire 15 antevia ao alertar sobre a “domesticação da utopia”.
Contra-argumentos e respostas
“A comparação entre pós-modernismo e fascismo promove falsa equivalência, ignorando que o primeiro surgiu como crítica aos totalitarismos”
Mesmo reconhecendo que o pós-modernismo originou-se como projeto crítico 3 4, sua radicalização epistemológica gera uma consequência inevitável: o relativismo absoluto mina as bases para resistência ética ao deslegitimar qualquer fundamento normativo 11. Casos como o negacionismo climático mostram como críticas à razão instrumental são desvinculadas de sua matriz emancipatória e recombinadas com irracionalismos fascistas. A análise não equipara projetos, mas revela como, sob o imperialismo 6, ferramentas críticas são cooptadas por dinâmicas reacionárias, documentada 10 na transformação de “privacidade é direito” em “dados são propriedade”.
“O pós-modernismo é incompatível com autoritarismo por sua natureza antifundamentalista”
A incompatibilidade teórica não impede convergências operacionais. Movimentos autoritários contemporâneos operam através de “fundamentalismos líquidos” 8 que instrumentalizam a crítica pós-moderna. O sionismo ilustra este mecanismo: apropria-se da crítica pós-colonial aos nacionalismos europeus para justificar excepcionalismo étnico (“única democracia no Oriente Médio”), num paradoxo onde o antissistema torna-se sistema. No Brasil, o discurso bolsonarista contra “doutrinação marxista” nas universidades 12 utiliza linguagem pós-moderna sobre “hegemonia cultural” enquanto promove censura estatal, confirmando a tese sobre a absorção capitalista da crítica 2.
“A análise desconsidera contribuições democráticas do pós-modernismo, como o multiculturalismo”
Contribuindo para o reconhecimento identitário, o “giro cultural” pós-moderno frequentemente obscurece lutas redistributivas [^FRASER_1997]. Quando políticas multiculturais são cooptadas por corporações (ex.: “capitalismo arco-íris” durante guerras culturais), convertem-se em “armadilha da diferença” 6 : celebram diversidade superficial enquanto mantêm estruturas exploratórias.
Implicações democráticas
A erosão dos fundamentos epistemológicos da democracia representa risco existencial ao projeto moderno de emancipação. O capitalismo, em sua fase imperialista, transforma a cidadania em empreendedorismo individual 6, esvaziando o espaço público racional e convertendo conflitos políticos em escolhas de consumo. Esta “comodificação da resistência” manifesta-se quando lutas sociais são reduzidas a produtos culturais comercializáveis, como feminismo transformado em “pinkwashing” corporativo ou ambientalismo em “greenwashing” de petrolíferas. Nas plataformas digitais, esta dinâmica atinge intensidade máxima: algoritmos convertem o dissenso em “engajamento rentável” 10, fragmentando o tecido social em bolhas onde fatos cedem à tribalização afetiva 7. O resultado é o que Habermas anteviu como “colonização do mundo da vida”: a substituição da ação comunicativa por lógicas instrumentais que transformam cidadãos em dados e democracia em espetáculo.
Resgatar a democracia exige resgatar a educação pública como espaço de desmercantilização. Como evidenciam os ataques ao INEP 12, a defesa de avaliações técnicas independentes e currículos críticos constitui trincheira contra o avanço do irracionalismo. Movimentos como a Primavera Secundarista (2015-2016) mostraram o potencial desta luta: ao ocuparem escolas contra a “reorganização” privatizante, estudantes paulistas não só defenderam educação pública como reconstruíram o comum através de assembleias dialógicas. Este duplo movimento de defesa institucional e invenção democrática aponta para o único antídoto efetivo contra a síntese entre pós-modernismo e autoritarismo: a recomposição materialista da política onde utopia se ancora na transformação concreta das relações de exploração.
Conclusão
A análise desenvolvida demonstra que o “fascismo eterno” descrito por Umberto Eco 1 não é uma relíquia histórica, mas um padrão discursivo que ressurge através de sínteses perigosas com críticas pós-modernas à razão, mediadas pela lógica cultural do capitalismo em sua etapa imperialista 2. Esta convergência opera por um duplo movimento dialético: primeiro, o esvaziamento do potencial crítico do pós-modernismo (especialmente seu relativismo epistemológico e retórica anticiência) de seu projeto emancipatório original; segundo, sua instrumentalização por projetos autoritários que recombinam estes elementos com mitos fascistas, gerando formas híbridas de irracionalismo político, do negacionismo científico às campanhas de deslegitimação de instituições democráticas.
Os casos brasileiros analisados revelam como essa dinâmica assume contornos concretos: a retórica pós-moderna da “doutrinação ideológica” é mobilizada para justificar o desmonte liberal da educação pública 6, enquanto práticas de “assédio ideológico” reatualizam o princípio do “dissenso como traição” 1. Esta mercantilização da crítica, onde ferramentas conceituais destinadas à libertação são convertidas em armas reacionárias, constitui a alienação suprema do capitalismo tardio, transformando até mesmo a resistência em mercadoria 10.
O fascismo eterno sobrevive não como réplica histórica, mas como “nebulosa de hábitos culturais e pulsões obscuras” que se adaptam às novas condições 1. Seu combate exige mais que memória: exige compreender como, sob novas roupagens, repete-se o gesto primordial identificado por Foucault 4: a substituição da política pela polícia do pensamento.
Mais do que nunca, a defesa do conhecimento científico e da conquista das condições materiais para a vida são condição e caminho para a democracia e para a emancipação tanto da coletividade, esta também condição para a emancipação do indivíduo.
Leia também
Ur-Fascismo: a vigilância perpétua de Umberto Eco contra o autoritarismo
Referências
- ECO, Umberto. Ur-Fascism. The New York Review of Books. 22 Jun. 1995. ↩︎ ↩︎ ↩︎ ↩︎ ↩︎ ↩︎ ↩︎ ↩︎ ↩︎
- JAMESON, Fredric. Pós-modernismo: A lógica cultural do capitalismo tardio. Ática. São Paulo: 1997. ↩︎ ↩︎ ↩︎ ↩︎ ↩︎ ↩︎ ↩︎ ↩︎ ↩︎ ↩︎ ↩︎
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- FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. Edições Loyola. São Paulo: 1996. ↩︎ ↩︎ ↩︎ ↩︎ ↩︎ ↩︎ ↩︎
- ANDERSON, Perry. As Origens da Pós-Modernidade. Zahar. Rio de Janeiro: 1999. ↩︎ ↩︎
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