
da esquerda para a direita: Barata Moura, Vitorino, José Jorge Letria, Manuel Freire, Fausto, Zeca Afonso e Adriano Correia de Oliveira – 29 de março de 1974
Ainda sobre a Revolução de Abril em Portugal, publico um texto do jornalista e historiador alentejano Pedro Laranjeira.
Em 1974, Pedro era jornalista freelance e tinha suas reportagens constantemente veiculadas no programa Limite, da Rádio Renascença, o mesmo programa que transmitiu Grândola Vila Morena em 25 de abril, como senha de arranque da MFA.
Como jornalista, Pedro cobriu a Revolução de Abril, gravando cerca de 7 horas de reportagem, junto com seus colegas Adelino Gomes, Paulo Coelho e Barbara Skolimowska. Esse material, editado e condensado em cerca de 2 horas e meia, foi veiculado pela Rádio Renascença durante a noite de 26 e a madrugada de 27 de abril de 1974 e posteriormente publicado em vinil com o título de O dia 25 de abril – Diário da Revolução 1974.
Testemunha ocular, Pedro publicou este texto em seu blog em 30 de março de 2007. Não conhecia o texto e recebi a dica do também jornalista Roberto Salomão, a quem desde já agradeço.
Grândola Vila Morena… o porquê da canção de abril
Pedro Laranjeira
Esta história é a narrativa de uma experiência de vida difícil de esquecer…
Há quem pense que foi a letra que fez do “Grândola” a canção escolhida para “senha de avanço” na noite de 24 para 25 de abril de 1974, que foi o poema ou a figura de José Afonso, per se … mas não… se tudo isso pesou, e pesou decerto, a composição do Zeca tornou-se o símbolo da revolução dos cravos por um significado maior, que adquiriu menos de um mês antes. Foi num acontecimento em que participaram muitos portugueses, de forma espontânea, mas que passou relativamente despercebido na comunicação social de então, nesses tempos em que a Imprensa, para falar de certas coisas, tinha que fazê-lo “nas entrelinhas”…
Estava-se em março de 1974.
A Casa da Imprensa organiza, no Coliseu dos Recreios, o “Primeiro Encontro da Canção Portuguesa”.
Quase não aconteceu, porque a necessária autorização nunca chegou. Segundo declarações de José Jorge Letria à Visão, trinta anos depois, “O regime já estava nitidamente em fase de implosão. Quiseram derrotar-nos não com uma proibição do Festival, mas com uma não-resposta. Até ao dia do espectáculo ainda não sabíamos se tínhamos, ou não, autorização. Por volta das 17 e 30 do dia 29, quando cheguei ao Coliseu, já havia muita gente à volta, e ao fundo da Avenida da Liberdade lá estava a polícia de choque … estava a desenhar-se ali um confronto!”
O ambiente no país era tenso: menos de duas semanas antes tinha ocorrido o golpe frustrado de 16 de março, a censura dominava.
Eu trabalhava então como repórter free-lance para o programa “Limite” da Rádio Renascença (o tal que tocou o “Grândola Vila Morena”) e fazia em média seis reportagens de exteriores por semana, com não mais que uma a passar as malhas da censura.
Nessa noite, fui para o Coliseu, armado de gravador e uma grande vontade de ouvir as vozes que os censores da rádio baniam.
O ambiente era quente, a despeito de uma primavera ainda fria… os bilhetes tinham sido todos vendidos e houve quem ficasse à porta. O governo fez deslocar para o Coliseu muitos agentes da ex-PIDE, que então se chamava DGS, misturados com os espectadores.
A primeira coisa que vi quando cheguei foram dois cavalheiros da censura a verificar as letras do que ia ser cantado – o visado era Adriano Correia de Oliveira, depois seguiram-se todos, sem excepção – o Zeca lá conseguiu ordem para cantar o Milho Verde e uma música alentejana que não pareceu perigosa aos senhores do lápis vermelho, o “Grândola”…
Do palco, a música abraçou um Coliseu com cerca de sete mil pessoas.
Ali estiveram Carlos Alberto Moniz e Maria do Amparo, Pedro Almeida, Fausto, Barata Moura, Vitorino, Adriano Correia de Oliveira, Zeca Afonso, Carlos Paredes, José Jorge Letria e Manuel Freire.
Tudo foi normal até à chegada ao palco do “cantor andarilho”. Zeca cantou o Milho Verde e a plateia pediu as canções que mais gostava… “Os Vampiros”, foi um grito que ouvi várias vezes.
Nessa altura, decidi sair dos bastidores e fui para a plateia, gravar tudo mais de perto.
José Afonso ia dizendo que não podia cantar o que o público queria… “Não pode ser, percebam… vamos cantar outra coisa”…
Foi então que se começou a fazer História.
Zeca cantou o Grândola. A meio, a plateia juntou-se-lhe, depois o resto do Coliseu, e também os artistas que tinham estado em palco – voltaram, deram-se braços, cantaram juntos, numa fila que enchia a boca de cena. A canção estava no fim, por essa altura… e foi natural que nem chegasse a terminar, recomeçando agora a sete mil vozes!
Eu corria de pessoa em pessoa, recolhendo testemunhos que não conseguia ouvir, microfone encostado às bocas…
O som era avassalador, uma música simples, uma letra que todos sabiam, sete mil peitos em riste… até àquilo que foi a mais impressionante manifestação espontânea a que assisti em toda a minha vida!
Já o Grândola ia em fins de segunda volta, aconteceu o inesperado…
… a certa altura, em vez de a música continuar alentejana, o próximo verso foi o primeiro do Hino Nacional – assim, sem pausa, sem transição, sem que ninguém tivesse dito nada… parece que foi um sentimento colectivo que sete mil pessoas tiveram!
Grândola Vila Morena transformou-se em Heróis do Mar e foi cantado da primeira à última estrofe, sete mil portugueses de pé a fazer vibrar a sala com o hino da pátria amordaçada, numa repentina liberdade assumida ali e então.
Nada poderia ter sido mais claro, nenhum grito faria mais sentido. Foi um momento que ficou escrito em letras de memória para quem lá esteve, um momento inolvidável, uma pedra de História.
Tinha nascido a razão maior por que “Grândola Vila Morena”, menos de um mês depois, se tornaria a escolha natural para uma senha que iria abrir as portas a um país novo!