Pelo fim da escala 6 x 1

O direito ao descanso como marco civilizatório

Maurício Moura

Em 1880, Paul Lafargue publicava O Direito à Preguiça, denunciando a obsessão das sociedades capitalistas pelo trabalho como uma loucura civilizatória1. Quase século e meio depois, o Brasil continua preso a esta mentalidade.

O atual debate sobre a escala 6×1 — seis dias de trabalho por um de descanso — demonstra a urgência da questão. Nesse sentido, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 8/25, protocolada em fevereiro de 2025, propõe redução da jornada para 36 horas semanais em quatro dias2 e abre espaço para repensarmos a importância do ócio como direito básico — e não como preguiça a ser evitada.

Este artigo examina como a lógica que vê o descanso como inimigo da produtividade está profundamente enraizada na nossa cultura e propõe desafiá-la.

“Uma estranha loucura possui as classes operárias das nações onde reina a civilização capitalista.
Essa loucura é o amor ao trabalho”
Paul Lafarge

Raízes históricas do ócio e do trabalho

Na Grécia Antiga, o ócio era visto como algo nobre. A palavra scholé, que deu origem à palavra “escola”, significava originalmente “tempo livre”, “ócio” ou “lazer”. Na Atenas clássica, o scholé era condição indispensável para o florescimento da filosofia e das artes — atividades reservadas aos homens livres, enquanto o trabalho manual cabia aos escravos.

Para pensadores como Aristóteles e Platão, o ócio era condição para a reflexão profunda e o autoconhecimento. Séculos depois, no Renascimento, Marsílio Ficino retomou essa tradição ao fundar a Accademia Platonica, valorizando o tempo livre como espaço de desenvolvimento humano. Epicuro, outro filósofo grego, defendia que a verdadeira felicidade vinha da ataraxia, ou seja, de um estado de serenidade mental. Para ele, o ócio não era sinônimo de inércia, mas de liberdade.

Tradições não ocidentais preservaram visões semelhantes. O Shabbat judaico — 24 horas de desconexão semanal — surge como resistência cultural ao produtivismo: “No sétimo dia, Deus descansou” (Gênesis 2:2), convertendo o repouso em mandamento divino3. No Japão, o Wabi-Sabi ensina a beleza da imperfeição e da pausa contemplativa, enquanto a filosofia africana Ubuntu (“Eu sou porque nós somos”) contrapõe o individualismo produtivista com a ética do cuidado comunitário.

Durante o Renascimento, Erasmo de Roterdã, em Elogio da Loucura (1511), satirizava a obsessão laboral da nascente burguesia: “Os negociantes são os maiores tolos […], passam a vida inteira contando, multiplicando, somando”. Lafargue ecoaria esse pensamento ao atacar o “dogma do trabalho” burguês do século XIX: “Uma estranha loucura está possuindo as classes operárias […]: o amor ao trabalho, a paixão furiosa pelo trabalho”1. Para ele, a santificação do trabalho era artifício para explorar proletários — tese que a escala 6×1 parece confirmar.

“Então, Deus abençoou o sétimo dia e o santificou, porque foi nesse dia que ele descansou de todo o trabalho que realizara”
(Gênesis 2:3)

A demonização do ócio

A Idade Média operou reviravolta perversa: o ócio, outrora virtude, foi recategorizado pela Igreja Católica Romana como pecado capital. Os monges cristãos condenavam a acedia (preguiça espiritual) como vício que abria portas ao demônio. Mas foi com o calvinismo que o trabalho ascendeu à categoria de oração. João Calvino reinterpretou o sucesso econômico como sinal de eleição divina, invertendo a maldição bíblica — “Comerás o pão com o suor do teu rosto” (Gênesis 3:19) — em prova de virtude. Essa lógica transformou o trabalho em prova de valor pessoal. Assim, quem não prospera, é porque não se esforça o suficiente. Esse pensamento serviu para justificar a falta de políticas sociais e naturalizar a desigualdade. Nascia a equação perversa: pobreza = preguiça = pecado.

O liberalismo absorveu essa ética. Benjamin Franklin proclamava “tempo é dinheiro”, convertendo eficiência em valor moral. Lafargue denunciou essa “santificação do trabalho” como estratégia patronal: “Os operários, entregando-se ao vício do trabalho, […] esgotam suas forças e as de sua prole”1. Reduzidos a “tarefeiros alienados”, internalizavam sua própria exploração.

A uberização contemporânea radicalizou essa lógica. Plataformas digitais transformaram descanso em “tempo ocioso” punível. O “fique online” exige disponibilidade constante, enquanto algoritmos recompensam quem trabalha além da jornada — reeditando a culpa calvinista sob nova roupagem. A preguiça, antes pecado religioso, virou “improdutividade” econômica.

A escala 6×1 como síntese da patologia social

Sob o argumento de “atender à demanda do comércio”, a escala 6×1 tornou-se hegemônica no varejo brasileiro. Trabalha-se seis dias para folgar um — frequentemente em turnos de 8 a 10 horas diárias. O movimento “Vida Além do Trabalho”, que recolheu 1.5 milhão de assinaturas contra esse modelo, catalisa relatos como o de Ana Lúcia, caixa de supermercado: “Quando folgo, passo o dia dormindo. Não tenho energia para minha filha”4. Estudos do Dieese associam a escala a maior incidência de LER, depressão e doenças cardiovasculares.

Aqui, a tríade de Domenico De Masitrabalho-lazer-aprendizado — colapsa. Sem tempo para lazer, impossibilita-se a síntese criativa. Se por um lado jornada média real é de 38.4h/semana, há o problema é a fragmentação: 22% dos trabalhadores cumprem jornadas irregulares ou noturnas, impedindo rotinas de descanso e estudo.

A PEC 8/25, proposta pela deputada Erika Hilton (PSOL-SP), ataca esse cerne: “A situação atual explicita que é o momento de […] redução da jornada sem redução de salário”2. Se aprovada, estabelecerá 36 horas semanais em quatro dias, enterrando o 6×1.

Impactos econômicos e tecnológicos

Críticos alegam que a redução inviabilizaria setores como comércio e serviços. Dados do IE-Unicamp, porém, revelam que 34.4 milhões de trabalhadores formais seriam beneficiados — 37% da força de trabalho. Homens (53%) e setores como alimentação e hotelaria seriam os mais impactados, por serem os que mais usam o 6×1.

A experiência alemã com semana de quatro dias oferece contra-argumentos. Em 2024, 73% das empresas participantes relataram aumento de produtividade, 58% reduziram turnover, e 85% dos funcionários reportaram melhor saúde mental5. O segredo? Automação estratégica. Cafés e restaurantes implementaram sistemas de autoatendimento e IA para gestão de estoques, compensando redução de horas humanas.

Lafargue antevia isso: “A máquina é a redentora da humanidade”1. Para ele, a automação deveria libertar o homem do labor, não gerar desemprego. A PEC insere-se nessa lógica: menos horas trabalhadas não significam menos produção, mas redistribuição. Trabalhadores com três dias livres consomem mais — cinema, restaurantes, turismo — gerando demanda por novos postos.

Contudo, é preciso confrontar a falácia da “livre negociação”. Em contextos de desemprego alto, “acordos” entre patrão e empregado raramente são simétricos. Como lembra Ricardo Azevedo, idealizador do Vida Além do Trabalho: “Ninguém escolhe trabalhar seis dias por semana. Aceita por medo da demissão”6.

Contraponto: custos e competitividade

Empresários alertam para aumento de custos. Um restaurante precisaria contratar mais garçons para cobrir folgas, encarecendo operações. A réplica vem em três frentes:

  1. Dados concretos: O modelo alemão mostra que ganhos de produtividade compensam 84% dos custos adicionais5;
  2. Superprodução: Lafargue lembra que crises capitalistas derivam do excesso de produção, não da redução de horas — “Os operários, ao invés de cantarem a glória do trabalho, deveriam […] consumir os produtos que fabricam”1;
  3. Economia do cuidado: De Masi defende que atividades não remuneradas (cuidado familiar, voluntariado, estudo) geram “capital social” essencial para economias saudáveis — algo impossível sob o 6×1.

A preguiça como progresso

A PEC 8/25 opera dupla subversão. Primeiro, inverte a lógica religiosa que santificou o trabalho: ao garantir três dias de descanso, resgata o Shabbat como direito laico. Segundo, atualiza Lafargue: “o direito à preguiça” não é apologia à inação, mas à “liberdade de viver florescendo capacidades humanas”7.

Num mundo de IA acelerada, o ócio criativo torna-se sine qua non para inovação. Einstein desenvolveu a teoria da relatividade durante seu emprego no escritório de patentes, onde tinha tempo ocioso para “experimentos mentais”. Steve Jobs praticava meditação. A ciência contemporânea comprova que neurônios consolidam aprendizados e geram insights em momentos de repouso.

A preguiça, assim, revela-se ato político. Como ensina o Ubuntu: “Uma pessoa é pessoa através de outras pessoas”. Descansar não é egoísmo — é pré-condição para criar sociedades verdadeiramente inventivas, cuidadoras e humanas. O fim da escala 6×1 é um passo civilizatório nessa direção.

“Trabalhar menos
Trabalhar todos,
Produzir o necessário
Distribuir tudo”

André Gorz


Notas e referências

  1. LAFARGUE, Paul. O Direito à Preguiça. Paris: 1880. ↩︎ ↩︎ ↩︎ ↩︎ ↩︎
  2. XAVIER, Luiz Gustavo PEC que acaba com a escala de trabalho 6×1 é protocolada na Câmara. Câmara dos Deputados. Brasília: 25 fev. 2025. ↩︎ ↩︎
  3. POSNER, Menachem*25 Fatos de Shabat que Todo Judeu Deveria Saber*. Chabad.org. Nova Iorque: 2023. ↩︎
  4. ALVES, Isabela; ALVES, Livia. O relato de três trabalhadores das periferias que estão na escala 6×1. Agência Mural. São Paulo: 4 dez. 2024. ↩︎
  5. CONCEIÇÃO, Vitor. Alemanha testa sistema de 4 dias de trabalho e tem veredicto claro: mais de 70% das empresas não voltam. IGN Brasil. São Paulo: 24 out. 2024. ↩︎ ↩︎
  6. SOUZA, Elisabeth Entrevista: “A escala 6×1 destrói vidas”. Revista Afirmativa. Salvador: 3 dez. 2024. ↩︎
  7. DE MASI, Domenico. Ócio Criativo. Rio de Janeiro: Sextante, 1999. ↩︎

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