Maurício Moura
Lançado em 1979 como parte do álbum conceitual The Wall, a canção “In The Flesh?” surge num contexto histórico marcado pela crise do Estado de Bem-Estar Social, ascensão de governos conservadores (Reagan, Thatcher) e ressurgimento de movimentos neofascistas na Europa. A obra de Roger Waters com o Pink Floyd reflete uma crítica multifacetada aos mecanismos autoritários, analisando tanto estruturas político-sociais quanto processos psicológicos de alienação. Este artigo propõe que a canção constitui uma radiografia dos dispositivos de controle ideológico cuja atualidade manifesta-se nos novos autoritarismos do século XXI, incluindo práticas sionistas contemporâneas. Através de metodologia integrada que conjuga análise musical com teoria política, demonstraremos como a obra antecipou dinâmicas de manipulação coletiva que hoje se reconfiguram. O objetivo é a construção de pontes para superar os desafios atuais da resistência democrática.
Fundamentação teórica
A análise articula-se com o conceito de “fascismo eterno” proposto por Umberto Eco 1, particularmente três características: o culto da ação pela ação, que substitui reflexão crítica por impulsos reativos; o medo da diferença como motor de unificação identitária; e a novilíngua enquanto instrumentalização da comunicação para fins de controle. Estes elementos dialogam com a tradição trotskista presente na crítica de Waters, especialmente a teoria do Estado burocrático em A Revolução Traída 2, onde Trotsky analisa como revoluções degeneram em novos autoritarismos quando substituem o poder popular por aparelhos coercitivos. A perspectiva complementa-se com a história cultural do rock progressivo 3, que identifica no período pós-68 uma virada conceitual onde a música assume funções de comentário político complexo, transcendendo o protesto imediatista. Tal enquadramento revela como “In The Flesh?” opera simultaneamente como denúncia e autópsia do autoritarismo não apenas como fenômeno externo, mas como patologia internalizada.
Análise da obra
A canção inicia com um helicóptero aproximando-se (sample que remete ao Vietnam War Report), criando imediatamente uma atmosfera bélica e vigilante. A progressão de acordes em Si menor – Lá – Sol – Fá sustenido estabelece uma cadência descendente que simbolicamente representa a queda na desumanização 4. A letra introduz o protagonista Pink como “showman” fascistóide (“So ya thought ya might like to go to the show?”), parodiando discursos demagógicos que convertem política em espetáculo. O refrão explode com distorções de guitarra e bateria marcial, ilustrando musicalmente o culto da ação: a textura sonora sobrepõe-se à melodia, substituindo complexidade harmônica por impacto sensorial imediato.
A metáfora central (“In the flesh”) opera em duplo sentido: literalmente, a materialidade dos corpos no estádio e, metaforicamente, a redução do humano à carne manipulável. Waters explicita este processo na linha “Which one’s Pink?”, questionamento que despersonaliza indivíduos convertendo-os em massa homogêne a5. Musicalmente, a alternância entre versos recitados (quase sussurrados) e explosões distorcidas replica a dialética opressor/oprimido, técnica que ecoa em “Pigs (Three Different Ones)” (1977) onde sintetizadores imitam tiros enquanto letras satirizam figuras de autoridade.
A autocrítica manifesta-se na performance vocal: Waters canta o papel do ditador com tom deliberadamente caricato, expondo o artifício da liderança carismática. Esta abordagem antecipa sua posterior rejeição ao stalinismo: o líder que trai a revolução transformando-a em tirania, tema central em “The Trial” (também de The Wall). O arranjo culmina com coros, quase como em óperas, que simulam adoração coletiva, técnica retomada em “Waiting for the Worms” para simbolizar a hipnose ideológica.
Waters militante
A politização explícita de Waters deve-se em parte à influência de Ted Knight, dirigente do Socialist Workers Party (SWP) britânico com quem manteve diálogo intenso entre 1978-1983 6. Knight apresentou-lhe a análise trotskista da burocratização soviética, reforçando a convicção de que estruturas hierárquicas reproduzem autoritarismo independentemente de discursos ideológicos. Esta formação reflete-se na letra: “Is it not what you would have me do?” questiona o processo pelo qual demandas por proteção convertem-se em aceitação do controle.
Waters nunca se filiou ao SWP, mas incorporou seu internacionalismo radical e crítica ao capitalismo de Estado. Sua correspondência 7 revela repúdio específico ao stalinismo enquanto “traição à revolução”, ecoando Trotsky: “Quando o poder deixa de ser exercido pela vanguarda consciente, mas por uma camada burocrática, a contrarrevolução já opera sob máscara revolucionária” 2. “In The Flesh?” funciona como lamentação por revoluções degeneradas, não apenas políticas, mas existenciais: o muro como metáfora das barreiras erguidas contra a própria humanidade.
Atualidade da luta antiautoritária
A análise dos mecanismos autoritários em “In The Flesh?” mostra assombrosa ressonância com práticas contemporâneas, particularmente no sionismo político. Pelo menos três paralelos são claros 8: o culto da segurança como substituto da ética, a demonização do diferente (palestinos como “ameaça existencial”) e a novilíngua onde “colonização” torna-se “reassentamento”. O controle territorial israelense atualiza a lógica do “Which one’s Pink?”: a redução de seres humanos a corpos administráveis.
Waters explicitou esta conexão através do ativismo no movimento BDS (Boicote, Desinvestimento, Sanções), argumentando que o sionismo institucionaliza mecanismos fascizantes analisados em sua obra 9. Crucial aqui é a distinção entre judaísmo (tradição religiosa/cultural) e sionismo (projeto político colonial): Waters sempre enfatizou parcerias com judeus antissionistas como Norman Finkelstein10. A coerência é clara: combater autoritarismos onde quer que se manifestem, seja em estádios rock ou em territórios ocupados.
Críticas e respostas
A equiparação entre fascismo histórico e autoritarismos contemporâneos banaliza o Holocausto.
Eco 1 enfatiza que o fascismo eterno não replica formas históricas, mas atualiza-se através de novos dispositivos. Características como o culto da tradição e populismo seletivo reemergem em contextos imperialistas 9. A análise de Waters não reduz singularidades, mas identifica padrões estruturais.
A crítica ao sionismo constitui antissemitismo velado.
Finkelstein 10 documenta como o antissemitismo foi substituído pela “indústria do Holocausto” para silenciar críticas a Israel. A trajetória de Waters inclui parcerias com artistas judeus e rejeição explícita a preconceitos religiosos. Sua oposição é ao projeto político sionista, nunca ao judaísmo, distinção corroborada por intelectuais judaicos antissionistas.
Conclusão
“In The Flesh?” permanece atual não por prever eventos específicos, mas por desvendar mecanismos perenes de dominação. Seu diagnóstico (autoritarismo como patologia que contamina tanto instituições quanto subjetividades) ilumina fenômenos contemporâneos desde neofascismos europeus até colonialismos revisionistas. A obra sintetiza crítica aguda e autocrítica radical: o fascista que Waters interpreta no palco é espelho de potencialidades autoritárias presentes em todos nós quando cedemos ao medo e à simplificação. Musicalmente, a canção antecipou a estetização da política que hoje domina redes sociais e campanhas eleitorais, onde forma suplanta conteúdo. Como alerta Eco 1, o fascismo eterno pode usar até roupagens democráticas para minar liberdades. Neste contexto, a análise integrada de obra artística e teoria política revela-se ferramenta indispensável para desmontar novos muros, sejam eles de concreto ou cognitivos.
Notas e referências
- ECO, Umberto. O Fascismo Eterno. The New York Review of Books. Nova Iorque: 22 jun. 1995. ISSN 0028-7504 ↩︎ ↩︎ ↩︎
- TROTSKY, Leon. A Revolução Traída. Pathfinder Press. Nova Iorque: 1937. ISBN 0-87348-815-8 ↩︎ ↩︎
- LYRA, Carlos Eduardo. Floydianos e freudianos: Uma análise da obra musical do Pink Floyd. Vozes, Pretérito & Devir, ano I, vol. I, num. I. 2013. ISSN: 23171979 ↩︎
- URICK, Bret. In The Flesh (1). Pink Floyd’s ‘The Wall’: A Complete Analysis. 2016. ↩︎
- URICK, Bret. In The Flesh (2). Pink Floyd’s ‘The Wall’: A Complete Analysis. 2016. ↩︎
- “They” feel loss like “we” do. Socialist Worker. Londres: 10 dez. 2013. ↩︎
- BLAKE, Mark. Pigs Might Fly: The Inside Story of Pink Floyd. Aurum Press. Londres: 1 out. 2007. ISBN 978-1-84513-261-3 ↩︎
- MOURA, Maurício. Neofascismo e Israel: colonialismo, militarização e a nova extrema-direita. Livre Pensamento. 14 jun. 2025. ↩︎
- MOURA, Maurício. Ur-Fascismo: a vigilância perpétua de Umberto Eco contra o autoritarismo. Livre Pensamento. 13 jul. 2025. ↩︎ ↩︎
- FINKELSTEIN, Norman. A Indústria do Holocausto. Record. Rio de Janeiro: 2001. ISBN 8501060178 ↩︎ ↩︎
