Os deuses eram astronautas? O mundo foi criado por um deus onipotente e esquizofrênico (é um só, mas tem múltiplas personalidades)? O universo foi criado pelo Monstro de Espaguete Voador começando por uma montanha, árvores e um anão?
Todas as teorias contemporâneas de intervenção divina começam a partir do mesmo ponto: as lacunas. Todas essas teorias partem daquilo que a ciência ainda não conhece para conceber teorias fantásticas sem qualquer evidência. É o que se chama de argumentum ad ignorantiam (argumento da ignorância). Para eles, se a ciência não pode provar uma coisa, então sua teoria fantástica e mágica “com certeza” está certa.
No texto a seguir, Michael Shermer analisa essa estreita correlação entre os deuses aliens e os aliens deuses. Shermer é psicólogo e historiador da ciência, fundador da revista Skeptic (cético) e colunista da revista Scientific American.
Como a crença em extraterrestres
e no Design Inteligente são similares
Argumentos de intervenção divina – aliens ou outras – começam com ignorância
por Michael Shermer
De acordo com a popular série Ancient Aliens – Alienígenas do Passado – no H2 (do History Channel), inteligências extraterrestres visitaram a Terra em um passado distante, como evidenciam numerosos artefatos arqueológicos que explicações científicas se provaram insatisfatórias para os entusiastas dos aliens. A série é a última de um gênero lançado em 1968 por Erich von Däniken, de quem o livro Chariots of the Gods? – Eram os Deuses Astronautas? – se tornou um best seller internacional. Isso gerou diversas sequelas, incluindo Gods from Outer Space – Deuses do Espaço Sideral – , The Gods Were Astronauts – Os Deuses Eram Austronautas – e, bem a tempo da festa do juízo final em 21 de dezembro de 2012, Twilight of the Gods: The Mayan Calendar and the Return of the Extraterrestrials – Crepúsculo dos Deuses: O Calendário Maia e o Retorno dos Extraterrestres – (que falhou em se materializar).
A teoria dos alienígenas antigos é baseada em uma falácia lógica chamada argumentum ad ignorantiam, ou “argumento da ignorância”. O raciocínio ilógico é assim: se não houver uma explicação terrestre satisfatória para, por exemplo, as linhas de Nazca no Peru, as estátuas da Ilha de Páscoa ou as pirâmides do Egito, então a teoria de que elas foram construídas por alienígenas do espaço sideral deve ser verdade.
Considerando a conjectura dos criadores de Ancient Aliens de que os usaram “levitação acústica de pedras” para construir as pirâmides, por exemplo, arqueologistas descobriram imagens demonstrando como dezenas de milhares de trabalhadores egípcios utilizaram trenós de madeira para mover as pedras pelas estradas da pedreira até o local e então as rebocaram gentilmente por rampas de areia da pirâmide em construção. Brocas de cobre, cinzéis, serras e furadeiras foram encontradas no cascalho ao redor da Grande Pirâmide de Gizé e as pedreiras estão cheias de pedras meio acabadas e ferramentas quebradas que mostram como os egípcios trabalhavam a pedra. Visivelmente ausente dos registros arqueológicos são os artefatos mais avançados do que os que eram usados no terceiro milênio antes de Cristo.
Outro artefato alegadamente alienígena é um símbolo encontrado no complexo egípcio do Templo Dendera que se assemelha vagamente uma lâmpada moderna com um filamento rabiscado dentro e uma conexão em baixo. Ao invés da explicação dos arqueólogos que explicariam que o símbolo retrata o mito da criação do tempo (o “conector” é uma flor de lótus que representando a vida decorrente da água primordial e o “filamento” representa uma cobra), as fantasias dos alienígenas ancestrais especulam que os egípcios receberam o poder da eletricidade dos deuses. Nesta linha de investigação de “se isso fosse verdade, o que mais seria verdade?”, é notável que nenhum fio elétrico, filamento metálico ou estação de energia elétrica jamais foi escavada.
Na tampa do sarcófago do rei maia Pakal, no México, está uma imagem “parecida com um foguete” que o consultor de produção do Ancient Aliens reivindica tratar-se do governante em uma nave espacial: “Ele está em um ângulo como os astronautas modernos na decolagem. Ele está manipulando alguns controles. Ele tem algum tipo de aparato de respiração ou algum tipo de telescópio em frente à face. Seu pé está sobre algum tipo de pedal. E tem alguma coisa que se parece com um escapamento – com chamas”. De acordo com os arqueólogos maias, entretanto, essa representação mostra o rei Pakal sentando em cima do monstro sol e descendo ao submundo (para onde vai o sol à noite) dentro da “árvore do mundo” – um símbolo mitológico clássico, com ramos estendidos ao céu e raízes cavando o submundo.
Os argumentos de ignorância dos alienígenas ancestrais assemelham-se aos argumentos do design inteligente do “Deus das lacunas”: qualquer que seja a lacuna que exista no conhecimento científico, aí está a evidência do design divino. Desta forma, os alienígenas ancestrais servem como deuses com “d” minúsculo da lacunas da arqueologia, com a mesma deficiência dos deuses das lacunas evolucionárias – os buracos já estão cheios ou perto de estarem e então para onde irá sua teoria? Na ciência, para uma nova teoria ser aceita, não é suficiente identificar apenas as lacunas na teoria predominante (evidência negativa). Proponentes precisam prover algumas evidências positivas em favor da sua nova teoria. E, como os céticos gostam de dizer, antes de dizer que algo é de fora deste mundo, primeiro tenha certeza que não é deste mundo.
Significativamente, nas impressões subsequentes de Eram os Deuses Astronautas?, o ponto de interrogação foi silenciosamente abandonado e este desqualificador foi adicionado à página de direitos autorais: “Este é um trabalho de ficção. Nomes, personagens, lugares e incidentes são produto da imaginação do autor ou são usados de maneira ficcional”. Lacuna fechada.
Fonte: Scientific American
Publicado originalmente com o título Gods of the Gaps
Tradução: Maurício Sauerbronn de Moura
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