A questão da mulher: gênero ou classe?

No ano de 2011, a Comuna de Paris fez 140 anos. Para marcar o aniversário do primeiro governo operário da história, foi realizado o Seminário “Comuna de Paris – 140 Anos”, no dia 27 de maio.

O seminário foi realizado pela Central Única dos Trabalhadores – Paraná (CUT-PR), pelo Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Paraná (APP) e pelo Sindicato dos Bancários de Curitiba e Região e ocorreu no auditório dos bancários, em Curitiba.

Entre outros debates, os participantes do evento discutiram o papel da mulher no movimento de emancipação dos trabalhadores, tomando como ponto de partida a participação delas na Comuna. O debate foi precedido de uma palestra da socióloga Misa Boito. É esta palestra que publicamos aqui hoje.

Misa é socióloga, dirigente da IV Internacional no Brasil (Corrente O Trabalho) e integra o Diretório Regional do PT-SP.



A reflexão que eu quero fazer sobre o papel das mulheres na Comuna de Paris é para a gente enfrentar uma questão que hoje nós enfrentamos no interior do movimento operário: o problema da mulher é uma questão de gênero ou de classe?

Se a gente olhar a participação das mulheres na Comuna de Paris, a gente vai ver que… e nós vamos discutir aqui hoje, o papel da mulher trabalhadora na Comuna de Paris e não o papel da mulher em geral.

Uma das gravuras mais impressionantes que exista da Comuna de Paris e da Semana Sangrenta1 é quando as tropas começam a reprimir os comunardos2 e as comunardas e as mulheres burguesas, satisfeitas voltando a Paris, se regozijam do restabelecimento da ordem sob a base dos cadáveres de homens e mulheres trabalhadores.

O dia 18 de março de 1871 é o dia que historicamente começou a Comuna de Paris. Foi quando o povo botou… Foi aí, em 18 de março, que o governo foge para Versalhes. Como isso aconteceu?

O primeiro batalhão da Guarda Nacional que havia ordem de ser desarmado era o Batalhão de Montmartre3, aonde hoje, como o Julinho 4 falou, tem aquela catedral de comemoração da derrota da Comuna.

Eu quero ler pra vocês um pequeno trecho: “Eu desci do monte com a minha espingarda sob o casaco gritando: ‘Traição!’. Nós pensávamos morrer pela liberdade […] todas as mulheres estavam lá. Interpondo-se entre nós e os militares, as mulheres lançaram-se sobre os canhões e metralhadoras, os soldados permaneceram imóveis. A revolução estava feita”.

Isso é a descrição da Louise Michel4 (tem a té o filminho sobre ela que vai passar) do dia que é o dia histórico da Comuna de Paris. Em que condições as mulheres se interpõe na frente dos soldados, na frente dos canhos pra impedir… E elas botam todo mundo pra correr e impedem e o desarmamento. Em que condições isso ocorre?

Elas participam desse processo como membros de uma classe. Não uma classe estritamente operária, mas uma classe popular. As mulheres que participam da Comuna de Paris, são mulheres trabalhadoras, são mulheres operárias, professoras, pequeníssimas comerciantes, servidoras domésticas. São as classes populares e é nessa condição que elas participam da Comuna de Paris. Participam de maneira a associar completamente a luta contra a opressão feminina à luta da classe, enquanto tal, contra a opressão capitalista.

A Louise… vou falar um pouquinho sobre a Louise, depois eu retomo, pra dar a dimensão do que eu tô querendo dizer. A Louise Michel, depois que a Comuna foi derrotada, ela foi julgada e derrotada, foi uma dos que foram pra Nova Caledônia6 e lá se integrou ao movimento dos kanaks7 contra a opressão francesa, depois volta para a França. Quando ela foi julgada ela fez uma declaração que eu acho que concentra bastante o que eu quero dizer. Anarquista (não era marxista), antes blanquista8, depois anarquista, mas ela tinha a dimensão social e de classe que era a sua participação e de todas as mulheres:

“Eu pertenço inteiramente à Revolução Social. Declaro aceitar a responsabilidade por minhas ações. Devo ser excluída da sociedade” (isso ela fala perante os juízes) “e digo a vocês para fazerem isso. Uma vez que, aparentemente, todo coração que bate por liberdade tem direito a um pouco de chumbo, exijo minha parte! Se me deixarem viver, não deixarei de clamar por vingança e denunciar, em vingança dos meus irmãos, os assassinos do Comitê das Graças.”

Então isso dá o caráter de que a integração e a participação das mulheres é fundamentalmente empurrada por uma questão das condições particulares da própria exploração da mulher na sociedade de classes. As condições de trabalho na França em 1871 se eram terríveis em geral, eram muito terríveis para as mulheres. Um dos decretos que a Comuna de Paris estabelece, é a igualdade entre os sexos9, porque, evidentemente, havia um aspecto particular da exploração feminina no interior da exploração em geral.

As condições de trabalho são terríveis e, ao lado disso, o Código Civil, à época, francês (o código do Napoleão III10) estabelecia uma situação de a mulher ser uma pária social, a mulher era considerada propriedade do seu marido, a mulher não tinha direito a outra coisa se não educar seus filhos e trabalhar em casa. Não tinha direito ao voto, não tinha direito a uma série de coisas.

Mas, evidentemente, não foi em aliança com as mulheres da burguesia, que padeciam com o mesmo código, mas foi em aliança com seus irmãos de classe que as mulheres que participaram da Comuna puderam implementar dentro da Comuna os interesses específicos das mulheres.

Então, as questões que as mulheres levaram no processo da Comuna de Paris, enquanto mulheres trabalhadoras, puderam ser impressas por conta de ser um movimento (acho que o Claus11 falou bem), a Comuna de Paris era uma comuna operária e não socialista, mas que marca bem o caráter operário, porque o movimento operário traz, desde o seu gérmen, a questão da libertação da opressão da mulher.

Em uma situação em que não era uma participação espontânea – evidentemente que tem o fator da espontaneidade, como todo movimento, tem a explosão – mas era uma participação organizada, era uma participação planejada.

A Primeira Internacional que foi citada na parte anterior, a Associação Internacional dos Trabalhadores12, que participava diretamente da Comuna de Paris, tinha entre uma de suas representantes uma militante chamada Elisabeth Dmitrieff13 que era, digamos, quem dialogava diretamente com o Marx sobre a Comuna de Paris. A Elisabeth Dmitrieff, junto com outras mulheres, inclusive a Louise Michel, fundam – durante a Comuna começou a proliferar, crescer, aparecer organizações femininas, clubes revolucionários de mulheres e, finalmente, em abril de 1871, portanto no momento de mais ebulição da Comuna de Paris, foi criada a União de Mulheres para a defesa de Paris14. Eu vou ler depois um trecho de um documento dessa União pra vocês verem como toda a questão de gênero é completamente ligada ao desenvolvimento que a classe fazia.

Deixa eu ler aqui primeiro o negócio do comitê que é criado em abril de 1871. Esse comitê lança um apelo:

“Cidadãs! Preparemo-nos para defender e vingar os nossos irmãos! Às portas de Paris, nas barricadas, nos faubourgs, não importa onde! E se as armas e as baionetas forem todas utilizadas pelos nossos irmãos, nos restarão ainda as pedras do chão para esmagar os traidores.”15

E a partir daí as mulheres jogaram um papel na Comuna que foi um papel sob todas as frentes16: as mulheres pegavam em armas, as mulheres faziam os uniformes, as mulheres construíam os sacos para fazer as barricadas… Então, uma participação completamente integrada e na linha de frente da Comuna.

Quando houve a repressão à Comuna da Semana Sangrenta, nos processos, uma das grandes questões que a História registra, foi a resistência em particular encarniçada das mulheres na resistência à derrota. E quando houveram os julgamentos, eu vou retomar isso depois, mas quando houveram os julgamentos, uma declaração de uma das mulheres mostra a coragem e a disposição com que essas mulheres lutaram.

Eu queria, então, tendo dado alguns elementos mínimos da História, retomar e recolocar a discussão com vocês sobre a questão da mulher e o papel da mulher no processo de luta de classes.

O Trotsky17, que é um dirigente da Revolução Russa e que em 1938 escreveu um Programa, que se chama O Programa de Transição, nesse programa ele diz que, em geral, no processo revolucionário, são os setores, os mais explorados, os que mais sofrem as consequências da exploração capitalista, que se põe na cabeça de frente de uma mobilização. Isso ocorreu na Comuna de Paris. Isso volta, como já foi mencionado aqui, isso volta a ocorrer na Revolução Russa quando, em fevereiro de 1917, a partir de uma marcha de mulheres comemorando o dia da mulher, que então se comemorava naquela data (e aí também de acordo com o calendário russo), essa passeata deflagrou o processo de mobilização que levou à queda do Czar, em fevereiro de 191718.

E hoje, se a gente olha os processos, e confesso a vocês que não sei particularmente como se dá a participação específica das mulheres nesses processos que estão em curso no Egito, na Tunísia, na Argélia e todos os países que hoje estão no processo de, ou revolução ou efervescência, mas, eu acompanho a algum tempo e vejo com que heroísmo, por exemplo, resistem as mulheres palestinas em relação à opressão vergonhosa, hedionda, do Estado de Israel ajudado pelo governo americano.

Mas eu sei que nesses países (Tunísia, Egito), a juventude se colocou na frente (e todos nós sabemos) e se colocou na frente porque, assim também como as mulheres, são os setores que sofrem mais exploração, que concentram mais a indignidade, e evidentemente que se encontram, no curso do seu movimento, com a classe que é o que ocorre na Comuna de Paris.

Não há, na minha opinião (e estou falando isso porque estamos aqui para um debate), não há na minha opinião nenhuma especificidade de gênero que faça com que a mulher ocupe esse ou aquele papel no processo revolucionário. A especificidade sobre a mulher é dada sobre leis que são impostas, que são leis vigentes e que regem o sistema capitalista de exploração.

O Julinho falou na primeira parte que que em 1871 em Paris, haviam cerca de 2 milhões de pessoas, a grande maioria, trabalhadores.

Bom, milhões de pessoas buscaram, em 1871, de 18 de março a 28 de maio, buscaram o caminho da revolução.

Hoje nós vivemos em um mundo onde milhões e milhões de pessoas, e não só no Oriente Médio, não só no norte da África, buscam o caminho de se libertar da opressão capitalista. Eu acho que se a gente estudar a participação das mulheres na Comuna de Paris, e algumas ficaram famosas: a Louise Michel, a Elisabeth Dmitrieff, Natalie Lemel19… Tem várias que a gente vai estudar a biografia e vai ver a coragem, a competência, a elaboração, a inciativa que tiveram. Mas as mulheres anônimas também tiveram uma importante participação. Eu falei que quando veio o massacre, as mulheres foram as que se colocaram na resistência ao massacre e uma anônima, uma anônima que nem o nome aparece, é anônima mesmo, os documentos não registram o seu nome, julgada diante do juiz, porque quando começou a repressão, eles começaram a agarrar pedra. Como falou a Louise, “se não tiver as baionetas, nos restarão as pedras”, começaram a arrancar pedras e arrancar estátuas de igreja para fazer barricada. Então uma comunarda anônima, acusada de ter destruído imagens da igreja falou “Sim, assumo, é verdade. Mas as estátuas eram feitas de pedra e os que morreram eram feitos de carne e osso”. Na frente do juiz. Não se dobrando à opressão na frente do juiz.

Então, se no momento que nós estamos vivendo, onde aqui na primeira parte todos nós ouvimos as questões que a revolução, o sistema capitalista não tem saída (e não tem mesmo), mas nós não iremos ao socialismo com tapete deslizado, as dificuldades são muitas, eu acho que uma das questões quando a gente estuda o papel das mulheres, seja na Comuna de Paris, seja na Revolução Russa, seja em qualquer mobilização que seja uma ação de uma classe pra se livrar da opressão capitalista, se estudando esses exemplos, a gente conseguir que o movimento operário, homens e mulheres, compreendam que a questão feminina não é uma questão feminina em geral, que a questão da mulher não é uma questão da mulher em geral, mas que o que nos diz respeito às condições das mulheres trabalhadoras, se nós voltarmos a ter uma cor vermelha (porque vocês sabem que o lilás que comemora o dia internacional da mulher não se baseia em nenhuma luta. É muito controversa a história de que era lilás o pano da tal da fábrica. A rigor, o lilás foi estabelecido pela Organização das Nações Unidas, pela ONU, quando estabeleceu o Dia Internacional da Mulher, como um dia institucional da ONU). Se a gente voltar a compreender, se a gente conseguir avançar de que cada questão que nós enquanto mulheres trabalhadoras sofremos, são questões que nós vamos ter que resolver no combate conjunto da classe, eu acho que o exemplo das mulheres da Comuna de Paris mostra isso e eu acho que isso vai ser uma ajuda pra luta do conjunto da classe trabalhadora pela sua libertação, 140 anos depois da Comuna de Paris.

Obrigado.


  1. A Semana Vermelha é como ficou conhecida a repressão do governo oficial, burguês, à Comuna. O governo Adolphe Thiers fez um acordo com a Alemanha (eles estavam em guerra) para que pudesse esmagar a insurreição, o que resultou em um exército de 100 mil soldados contra apenas 15 mil milicianos em Paris. O resultado de tal repressão foi a morte de 80 mil pessoas e a prisão de outras 40 mil.
  2. Os insurretos e partidários da Comuna eram chamados de communards.
  3. 61º Batalhão da Guarda Nacional, em Montmartre.
  4. Julio Turra, sociólogo, professor e membro da direção nacional da CUT, foi outro palestrante no evento.
  5. Louise Michel, militante blanquista. Membro do 61º Batalhão da Guarda Nacional, em Montmartre, teve um importante papel na resistência ali. Durante a Comuna, assumiu-se anarquista, sendo uma das primeiras a utilizar a bandeira negra como símbolo do anarquismo.
  6. Nova Caledônia é um arquipélago na Oceania anexado à França em 1853. Foi largamente utilizado como local de deportação de comunardos.
  7. Kanak é a etnia predominante na Nova Caledônia, que se revoltou contra a dominação francesa em 1878
  8. O blanquismo foi uma corrente que defendia a revolução comunista na França. Tem esse nome por conta de sua principal liderança, Louis Auguste Blanqui.
  9. Um dos decretos da Comuna em 1871 diz:“A submissão das crianças e da mulher à autoridade do pai, que prepara a submissão de cada um à autoridade do chefe, é declarada morta. O casal constitui-se livremente com o único fim de buscar o prazer comum. A Comuna proclama a liberdade de nascimento: o direito de informação sexual desde a infância, o direito do aborto, o direito à anticoncepção. As crianças deixam de ser propriedades de seus pais. Passam a viver em conjunto na sua casa (a Escola) e dirigem sua própria vida.”
  10. Carlos Luís Napoleão Bonaparte, coroado Napoleão III, da França. Coroou-se imperador depois de um Golpe de Estado que pôs fim à Segunda República.
  11. Claus Germer, professor de economia da Universidade Federal do Paraná, outro palestrante no evento.
  12. A Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT) ou Primeira Internacional, foi uma organização política fundada em 1864. Tinha o objetivo de auxiliar a organização dos trabalhadores do mundo para a conquista de sua emancipação. Contou com a participação de todas as correntes que defendiam os trabalhadores à época (proudhonistas, marxistas, republicanos, sindicalistas etc). Participou ativamente da Comuna de Paris
  13. Elisabeth Dmitrieff, nascida Elisaviéta Loukinitcha Koucheleva, foi uma revolucionária socialista russa. Militante da Primeira Internacional, foi enviada a Paris em 1871 para auxiliar a Comuna como representante oficial da Internacional. Tinha, então, 20 anos. Foi uma das fundadoras da União das Mulheres.
  14. União das Mulheres pela defesa de Paris e pelos cuidados aos feridos. Organização fundada em 11 de abril de 1871 por várias comunardas socialistas, como Natalie Lemel, Paule Mink, Aline Jacquier, Marcelle Tinayre e Elisabeth Dmitrieff.
  15. O apelo foi assinado por “Um grupo de cidadãs”, dirigido “Às Cidadãs de Paris” e publicado no Journal Officiel da Comuna.
  16. A Comuna organizou dez batalhões femininos, as Amazonas do Sena.
  17. Leon Trotsky (nascido Lev Davidovich Bronstein) foi um militante marxista russo, um dos principais líderes da Revolução Russa e organizador do Exército Vermelho.
  18. Em 23 de fevereiro de 1917 (pelo calendário juliano – 8 de março, pelo gregoriano), uma série de atos públicos ocorreram por ocasião do Dia Internacional da Mulher. A fome e escassez provocados pela Primeira Guerra Mundial deram o tom dos atos, que continuaram por dias, tomando caráter de sublevação popular, até que, em 27 de fevereiro, um mar de trabalhadores ostentando panos vermelhos invade o palácio e institui o Governo Provisório. No dia 2 de março, o Czar Nicolau assinou sua rendição.
  19. Natalie Lemel foi uma militante socialista que se juntou a Primeira Internacional em 1865. Seus discursos de agitação se tornaram famosos no início da Comuna. Foi uma das fundadoras da União das Mulheres.
Transcrição, adaptação e notas: Maurício Sauerbronn de Moura

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