A incerteza na medicina

Harriet Hall*

Uma das razões que me levaram à medicina foi a ideia ingênua de que médicos sempre sabem o que fazem. Eu estava errada. Marya Zilberberg acertou quando disse que “a única certeza sobre a medicina é a incerteza”. Históricos de pacientes são incertos, exames físicos são incertos, testes são incertos, diagnósticos são incertos, tratamentos são incertos, até a anatomia humana é incerta. Médicos não são cientistas, eles são usuários práticos da ciência que aplicam evidências científicas ao cuidado do paciente. Medicina trata de probabilidades e suposições informadas, não certezas. Sintomas podem significar várias coisas. Eles podem ser um sinal de doenças sérias exigindo tratamento, uma doença que ainda não sabemos identificar e tratar, uma condição benigna que se resolverá sem tratamento, uma hipersensibilização de funções corporais normais, depressão, transtorno de somatização, simulação de doença ou um pedido de ajuda.

O relato do paciente de seus sintomas e histórico médico são incertos. Memória não é confiável. Nós esquecemos, nós distorcemos e nós lembramos coisas que nunca aconteceram. Pacientes querem se apresentar sob uma boa luz. Eles tendem a subestimar seu uso de álcool e tabaco e hesitam em mencionar indiscrições sexuais e o uso insensato e de remédios absurdos. Suas respostas para “quanta dor em uma escala de 1 a 10” dependem de variáveis tais como seu humor atual e seu grau de rigidez moral.

Médicos fazem uma “revisão dos sistemas” (muitas vezes por um questionário impresso) perguntando sobre sintomas em diferentes sistemas corporais (respiratório, gastrointestinal etc.). Respostas vão depender de quão significativos o paciente pensar que os sintomas são. Um paciente pode responder “não” para azia porque ele acha que sua azia não vale a pena ser mencionada. Outro pode dizer “sim” porque lembra que teve uma sensação leve de queimação por cerca de 2 minutos no último mês.

Exames físicos são incertos. É fácil perder uma anormalidade como um baço aumentado a menos que você suspeite disso e tente encontrar isso com mais afinco. Mesmo a anatomia é incerta. Algumas pessoas tem órgãos invertidos (situs inversus), onde o coração está à direita e o apêndice na esquerda. Alguns tem um rim faltando. A localização das veias e nervos é variável. Olhe as veias na parte de trás das suas mãos, elas não estão exatamente no mesmo lugar em cada mão.

Mesmo algo que aparente ser direto como o anúncio obstetrício de “é um menino!” pode estar errado. No meu recente artigo sobre diferenças de gênero (“Gender Differences: What Science Says and Why It’s Mostly Wrong” na Skeptic 18.2) eu listei cinco determinantes de sexo biológico em um recém-nascido (cromossomos sexuais, gônadas, hormônios, órgãos genitais internos e externos) e as várias maneiras que cada um deles pode estar errado. Outros fatores posteriores na vida contribuem para a classificação de sexo e gênero: desenvolvimento das características sexuais secundárias na puberdade, o sexo em que a pessoa foi criada, auto-identificação de gênero, objeto de desejo, comportamento, roupas, papel na sociedade e gênero legal.

Testes de laboratório são incertos. Valores laboratoriais normais são determinados por meio de testes com muitas pessoas normais, criando uma curva em formato de sino, retirando ambos os extremos e determinando arbitrariamente os 95% centrais como normal. Resultados fora da variação laboratorial normal não são necessariamente anormais e resultados dentro da variação não são necessariamente normais. Se uma pessoa saudável faz 20 testes, é comum que um esteja fora da variação “normal” apenas pelas probabilidades. Erros laboratoriais podem ocorrer por erros na rotulagem, falha na calibração dos instrumentos, erros de procedimento e erros de escrita. Variações durante o dia, gravidez, drogas, dietas, exercícios e suplementos podem afetar os resultados dos testes.

Exames de imagem podem ser enganosos ou mal interpretados. Uma imagem de ressonância magnética funcional famosa de um salmão aparentava que ele estava pensando, mas o salmão estava morto. Quando a figura de um pequeno gorila foi adicionada a uma tomografia computadorizada do peito, 83% dos radiologistas que leram os raios-X procuraram por sinais de câncer no pulmão e não perceberam o gorila: um exemplo de cegueira por desatenção.

Testes de rastreio envolvem um monte de incertezas. Resultados falsos positivo podem levar a preocupação desnecessária e investigações adicionais incluindo testes invasivos que podem resultar em danos ou morte. A Força Tarefa de Serviços Preventivos dos Estados Unidos (USPSTF – United States Preventive Services Task Force) recomenda que os seguintes testes não sejam usados como exames de rotina porque eles geralmente causar mais mal do que bem: testes de PSA (antígeno prostático específico), eletrocardiograma, teste intracutâneo para tuberculose, exames de escoliose e raios-X de peito.

Médicos não são cientistas,
eles são usuários práticos da ciência que aplicam
evidências científicas ao cuidado do paciente.
Medicina trata de probabilidades e suposições informadas,
não certezas.

Testes genéticos de farmácia podem ser enganosos. A um homem de olhos azuis foi dito que ele tinha os genes para olhos castanhos. Testadores olham apenas para SNPs (single nucleotide polymorphismspolimorfismo de nucleotídeo único) e informam probabilidades baseadas em informações imperfeitas. Eles podem informar que pessoas com seu SNP tem 30% mais chance de desenvolver o mal de Parkinson que pessoa com outro SNP. Mas doença não é destino. Mesmo que você tenha um gene para uma doença, esse gene pode ou não pode ser expresso. Expressão genética depende de fatores ambientais e epigenéticos e de interações com outros genes. Nosso acesso à informação genética atualmente excede nossa compreensão de qual dessa informação realmente importa.

Diagnósticos são incertos. Algumas condições, como o mal de Alzheimer, não podem ser diagnosticadas em definitivo até a autópsia. Testes não fazem um diagnóstico, eles apenas aumentam ou diminuem a probabilidade do diagnóstico comparado a probabilidades testadas anteriormente. O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais  (DSM) tem sido largamente criticado: sua confiabilidade e validade não foram estabelecidos, categoriza por sintomas mais do que por causas, é culturalmente tendencioso, tende a medicalizar problemas comuns da vida e ele rotula e estigmatiza pacientes. Edições anteriores do DSM rotulava a homossexualidade como um transtorno psiquiátrico.

Médicos podem constantemente tomar decisões baseados em informação inadequada. Eles não podem permitir “paralisia de análise”. Se eles hesitarem como Hamlet, seus pacientes podem morrer. Eles andam sobre uma linha fina entre humildade indecisa e a arrogância imprudente do excesso de confiança. Cirurgiões em particular precisam decidir e agir rapidamente antes que o paciente sangre.

Will Rogers disse “não é o que nós não sabemos que nos traz problemas, é o que nós sabemos de errado”. Por anos nós “soubemos” que episotomias de rotina, mastectomias radicais e ligaduras de artéria interna mamária beneficiavam nossos pacientes, mas estudos controlados mostraram que não, então paramos de fazê-los. Por séculos médicos tiveram certeza de que sangrias funcionavam, mas elas efetivamente matam os pacientes.

Tratamentos envolvem um monte de incertezas. Escolher as melhores drogas para cada paciente geralmente é um chute. Testes genéticos prometem eventualmente nos guiar para escolhas de drogas individualizadas, mas não ainda são muito práticos de usar. Escolher um antibiótico para pneumonia ou meningite é jogo de adivinhação baseado na exposição, viagens, estado imunitário, alergias, as causas mais comuns dessas infecções e prevalência de cepas bacterianas na comunidade. Aguardar pela cultura e testes de sensibilidade não é uma opção, uma vez que o paciente pode morrer antes dos resultados chegarem.

Há incerteza na comunicação. Pacientes geralmente não lembram que médico disse o que. Em um estudo recente de pacientes sob quimioterapia paliativa para câncer terminal, vários pacientes estavam sob a falsa impressão de que isso oferecia uma chance de cura ou de longa sobrevivência, enquanto seu único propósito era tornar a morte mais fácil.

Quando nenhum diagnóstico é encontrado, médicos e pacientes precisam decidir quando parar de testar e aceitar a incerteza. Uma vez que doenças sérias tenham sido descartadas, a probabilidade de que testes posteriores identifiquem alguma coisa significativa e tratável fica cada vez menor. Testes demais podem ferir o paciente através de falsos positivos, ansiedade desnecessária, falsa esperança, buscas fúteis e procedimentos diagnósticos invasivos, perigosos e caros. Em algum ponto nós devemos parar de perguntar “por que” e focar no “como” para lidar com sintomas e melhorar a qualidade de vida. Três coisas podem acontecer. Os sintomas podem desaparecer (nesse caso, quem se importa com o que os causou?). Eles podem permanecer os mesmos, caso em que nós podemos continuar tentando encontrar melhores meios de lidar. Ou eles podem ficar piores, caso no qual nós podemos sempre reavaliar e reconsiderar a necessidade de novos testes.

Nós podemos aprender a viver com a incerteza e certamente é melhor estar incerto do que ter certeza de estar errado. Voltaire disse que “incerteza é uma posição desconfortável. Mas certeza é uma absurda”.

Medicinas alternativas e complementares lidam com certezas. O quiroprático tem certeza que seus sintomas são causados por subluxações e é tratável com manipulações. A naturopata Hulda Clark tem certeza que toda doença é devida a parasitas e tem certeza que ela pode curar todas as pessoas com seu zapper 1, mas ela falou em curar a si mesma. Sherry Rogers, autor de Desintoxique ou Morra, tem certeza de que as doenças existem devido a toxinas. Um homem de negócios chamado Robert Young tem certeza que elas existem devido a acidoses. Acupunturistas tem certeza de que doenças existem devido a obstruções ou desequilíbrios no fluxo do qi 2.

Uma vez eu procurei na Internet por “a única causa verdadeira para todas as doenças” e encontrei 67 delas! Elas incluem açúcar refinado, grãos na dieta, stress, ama 3 devido a doshas 4 agravados, radicais livres, pecado, alergias, venenos químicos, cólon congestionado, feitiçaria, excessos, acidez na comida, metais tóxicos, arrogância, enfraquecimento do movimento dos ossos do crânio, frio e pobreza. Em um website I aprendi que “Os Estados KKK Unidos da América são a causa raiz de todas as doenças”. Eu não tenho ideia de o que isso significa, mas eu acho conveniente ter alguém para culpar.

Maníacos e charlatães precisam de humildade face às doenças. Eles demonstram a arrogância da ignorância. Eles atraem suas vítimas com falsas promessas de curas milagrosas para doenças incuráveis e alternativas “naturais” menos assustadoras que cirurgias, quimioterapia, radiação e drogas. Eles não sabem o que eles não sabem e isso os faz muito perigosos.

A medicina moderna é crivada com incertezas, mas também é muito melhor que qualquer outra opção. Médicos compreendem ciência básica, julgamento realista de probabilidade,  luta com as realidades da incerteza e fazer suposições informadas baseadas na melhor evidência disponível no momento. Medicina alternativa lida com certezas baseadas na fantasia e intuição. Medicina científica progride ao longo do tempo e descarta tratamentos que não funcionam. Medicina alternativa nunca admite erros e não faz nenhum progresso.

Incerteza pode ser uma coisa boa.


Harriet HallHarriet Hall é médica de família aposentada e coronel da Força Aérea que vive em Puyallup, no estado de Washington. Ela escreve sobre medicina alternativa, pseudociência, charlatanismo e pensamento crítico, contribuindo para a revista Skeptic e a Skeptic Inquirer. É também consultora do Quackwatch e editora do Sciencebasedmedicine.org. É autora do livro Women Aren’t Supposed to Fly: The Memoirs of a Female Flight Surgeon. Seu site é o SkepDoc.info.


Notas da tradução:

  1. Zapper é um dispositivo de pulso de baixa tensão em corrente contínua. Hulda Clark afirmava que tal disposivito matava todos os parasitas, vírus e bactérias.
  2. Qi, ch’i  ou ki é uma energia cósmica que, na tradição chinesa, permeia todo o universo. É a energia vital intangível que dá vida à matéria tangível.
  3. Ama é uma palavra em sânscrito que significa cru, imaturo ou indigesto. Para o Ayurveda, a concentração de alimentos indigestos é a raiz de todas as doenças.
  4. Dosha é o perfil biológico do indivíduo segundo o Ayurveda. É o desequilíbrio entre os doshas que produz as doenças.
Fonte: Skeptic Magazine
Tradução: Maurício Moura

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