Guerras paleoantropológicas: a descoberta do Homo naledi gerou considerável controvérsia neste campo científico

Nathan Lents*

Notícias da explosiva descoberta do Homo naledi na África do Sul reverberou através do mundo em setembro de 2015. As mídias científica, popular e social  ficaram igualmente alvoroçados com a natureza verdadeiramente deslumbrante da descoberta: milhares de fósseis, mais de uma dúzia de indivíduos, quase um esqueleto inteiro reconstruído. Nunca, nos 150 anos de história da paleoantropologia, tanto tinha sido encontrado de uma vez. De uma só vez, agora há mais fósseis do Homo naledi do que há de mais de metade dos outros hominídeos que viveram e morreram durante os últimos sete milhões de anos. Foi uma descoberta singular.

A descoberta foi diferente em outra maneira, também. Lee Berger, o antropólogo que liderou a investigação, demonstrou um firme comprometimento em levar os resultados do trabalho da equipe, e os próprios fósseis, para o público assim que possível.Dentro de dois anos da descoberta inicial, os primeiros trabalhos foram publicados e os fósseis foram disponibilizados ao público,. e não apenas na via tradicional de publicar um artigo e colocar os preciosos fósseis atrás de placas de vidro para o público se embasbacar com eles. Berger o outro membro do time, Johm Hawks, completaram uma extensiva imagem tridimensional dos fósseis e forneceram os dados resultantes gratuitamente para qualquer um. Com esses dados, pode-se imprimir em 3D seu próprio molde em alta resolução dos fósseis originais. De qualquer lugar no mundo, pode-se obter uma cópia fiel com a maior qualidade possível sem custo, exceto dos materiais para a impressão. Mesmo em nossa era de acesso livre, este é um nível inédito de transparência e compartilhamento de dados.

Apesar deste grande entusiasmo, não demorou muito para alguns resmungos serem ouvidos. Paleoantropólogo e membro da Academia Nacional de Ciência, Tim White, por exemplo, se apresentou como crítico-chefe. White ganhou seu espaço no hall da fama várias vezes e talvez sua maior contribuição seja o Ardi (Ardipithecus ramidus), um dos mais antigos hominídeos conhecidos. Quase dois milhões de anos mais velho que “Lucy” (Australopithecus afarensis), Ardi trouxe uma visão profunda em como e quando a linhagem que daria origem aos seres humanos divergiram de nossa linhagem comum com os macacos.

A crítica de White ao Homo naledi é tanto do processo quanto do resultado. Em primeiro lugar, White expressou extrema contrariedade com a velocidade que Berger e seu time revelaram suas descobertas e anunciaram suas conclusões. Em sua opinião, o lugar apropriado para anunciar os fósseis é em uma conferência científica, onde sua imporância pode ser debatida por especialistas antes de cativar o público. Ele usou o exemplo do Ardi para demonstrar sua posição, notando que 15 anos se passaram entre a descoberta inicial dos fósseis em 1994 e o primeiro artigo científico sobre isso em 2009. Nesses anos de intervalo, medições preliminares foram anunciadas em várias conferências científicas, muitas vozes foram ouvidas e a interpretação final foi um esforço coletivo das mais brilhantes e experientes mentes no campo.

Embora pereça difícil argumentar com as posições de White de que uma ciência lenta, cuidadosa e deliberativa produza conclusões mais fidedignas, há um lado obscuro nas pessoas que mantém tais fósseis preciosos perto de si por muito tempo: a acusação de elitismo. Durante os muitos anos que todos na área souberam que White tinha em sua posse os ossos de um hominídeo incrivelmente antigo, ele manteve completo controle sobre quem teve acesso a eles e quanto podia ser revelado. Além de reforçar sua própria fama na área, o protecionismo prolongado dos fósseis do Ardi significava que o ritmo da pesquisa estava totalmente sob seu controle.

Berger e Hawks tem uma visão diferente: fósseis não pertencem nem devem ser controlados por qualquer pessoa. Eles são presentes preciosos do nosso passado e a são propriedade do mundo todo. Guardá-los e escondê-los equivale a roubar. Esta é uma nova forma de fazer ciência e os benefícios são óbvios e profundos.

A crítica de White vai mais longe e fica mais mordaz. White não sente que o Homo naledi seja uma nova espécie absolutamente e é, ao contrário, uma variante mais primitiva do bem conhecido Homo erectus. Em uma entrevista intitulada “Alguns ossos para escolher“, White eleva o nível de suas acusações: “Eles são um Homo erectus menor, primitivo… Isso porque eles não são biologicamente diferentes, de um modo significativo, dos já conhecidos Homo erectus… Das mais de 80 características listadas no material suplementar do e-LIFE, apenas uma pequena fração foram reivindicadas para diferenciar esses fósseis do anteriormente descrito Homo erecuts e essa fração de características é conhecida por variar entre os membros de uma mesma espécie (mesma população) tanto no Homo erectus como no Homo sapiens. Em outras palavras, a ‘espécie’ recentemente descrita é um exemplo da inflação artificial de espécies na paleoantropologia”.

Embora White seja conhecido por falar com leveza e ser bem educado, essas são palavras de briga. Não muito depois do primeiro artigo aparecer, a California Magazine, publicada pela Associação Alumni da Universidade da Califória em Berkley, onde White é o professor universitário de paleoantropologia, entrevistou-o para um artigo de acompanhamento. Ele continuou com sua discussão sobre a sobreposição de algumas características da espécie e concluiu: “essas alegações de uma nova espécie é um pouco superficial”.

Hawks, segundo em comando do time do Homo naledi de Berger, respondeu rapidamente em seu blog, facilmente o blog mais largamente lido na paleoatropologia. Ele detalhou uma meia dúzia ou mais diferenças maiores entre o naledi e o erectus. Homo naledi te uma capacidade craniana substancialmente menor, uma mandíbula mais estreita e mais um colo do fêmur mais achatado que o erectus. Ele ainda observa diferenças na escápula, tíbia, pélvis, vértebras e vários aspectos na definição entre naledi e erectus e, em todos os casos, as diferenças são tão fortes que são completa ou quase completamente sem sobreposição na variedade encontrada para essas medidas.

Hawks afirma isso claramente: “é apenas uma correspondência com o Homo erectus, então a única forma de fazer o fóssil do Homo naledi caber no Homo erectus é esticar essas espécie além de qualquer outra já definida na linhagem humana”. Ai!

A briga pode ser maior do que uma simples  discordância em relação a características do Homo naledi. Nós podemos estar testemunhando uma transição na paleoantropologia e a passagem da tocha da Velha Guarda para uma nova geração com uma nova visão de como o campo pode avançar. Não é apenas sobre deixar fósseis disponíveis ou não, é sobre como a informação nesses fósseis pode ser interpretada. Enquanto White vê grande variação dentro de uma única espécie largamente dispersa e de longa vida, outros vêem várias especies individuais com um mosaico de características compartilhadas e únicas.

Através de mutação aleatória, evolução está implacavelmente mexendo com o plano do corpo animal, dirigindo espécies em direção a diversificação e vários modos de vida. O resultado é geralmente uma larga e espessa árvore de família que é podada e selecionada pela crueldade da seleção natural. Entre os melhores exemplos disso entre os primatas estão os lêmures de Madagascar. Enquanto estiveram geograficamente isolados por dez milhões de anos, eles diversificaram intensamente, evoluindo em dúzias de espécies com larga variedade de estilos de vida e anatomia. Se as várias espécies de hominídios floresceram por um longo período de tempo, poderíamos ter visto tanta diversidade entre os Homo e outros gêneros relacionados como nós vemos entre os sifakas e outros lêmures de Madagascar.

Como Ian Tattersall escreveu em seu recente livro sobre desenvolvimento do campo da paleontoantropologia no Século XX, muitas das recentes figuras poderosas na área tiveram pouco ou nenhum treinamento na teoria da evolução. Eles eram em sua maioria anatomistas e não tiveram base para entender como a morfologia pode ser usada para entender os relacionamentos evolucionários. Cada novo fóssil era uma nova espécie e é isso.

Entretanto, no caminho estava Erns Mayr, que sabia pouco sobre primatas e hominídeos, mas foi uma autoridade em evolução e sistemática através de seu trabalho sobre a especiação dos pássaros. Sua influência na paleontrapologia veio para inaugurar a era do agrupamento extremo, convencendo a todos que todo registro fóssil humano tinha uma linhagem e apenas três espécies, cada uma se transformando na outra até chegar ao Homo sapiens. Ecos desse tipo de agrupamento extremo podem ser encontrados no criticismo de Tim White sobre o Homo naledi, que criticou similarmente a descoberta do Australopithecus deyiremeda no início deste ano, insistindo que ele não seria mais do que uma variante do Australopithecus afarensis, a espécie da Lucy.

Eu falei com Ian Tattersall e perguntei sua opinião sobre a controvérsia. Enquanto ele esteve relutante em criticar colegas que tem grande respeito, ele admitiu que “a definição de Tim do erectus é tão ampla que torna esse tipo de coisa inevitável”. Quando eu perguntei sua opinião, ele disse “eu não penso que há qualquer chance de isso ser um erectus. Tem um cérebro muito pequeno mas algumas surpreendentes características modernas que acompanham esse minúsculo cérebro”.

Por sua parte, Tattersall parece estar no extremo completamente oposto do espectro de White. “Acima de tudo, eu não creio que o erectus tenha estado na África, então nós não vamos ver olho no olho aqui. Mas eu acho que a principal crítica de White é que Berger tornou tudo público muito rapidamente”.

Perguntado sobre onde está na questão da publicação rápida de acesso aberto, Tattersall foi unequívoco: “Bom, isso certamente cria um incrível precedente para o futuro em termos de abertura e de fazer as coisas acessíveis e eu acho que isso é um movimento muito bom”. Para um velho estadista no campo, Tattersall realmente gosta de novas tendências.

Tattersall também descreve White como “o derradeiro tradicionalista”. Embora negue, não é difícil ver esse rótulo como uma dura repreensão, dado o impulso do último livro de Tattersall. Seu respeito por White foi óbvio.

De sua parte, Berger bateu de volta imediatamente. No mesmo artigo da California Magazine, ele diz: “O debate sobre o Homo naledi ser um ‘Homo erectus primitivo’, qualquer que seja, não será resolvido na mídia, tradicional ou social. [White] continua a usar a mídia para argumentar qualquer caso sem suporte que ele tenha para tais afirmações enquanto protesta que nós usamos a mídia para tornar ‘hype’ que nosso fóssil (embora nossas ideias tenham sido, de fato, publicadas em uma respeitada revista científica) pareça ser um jeito apenas para colocar nosso nome na mídia ao invés de qualquer forma de discurso científico”.

Como alternativa, Berger convidou White a apresentar seu desafio na literatura erudita e deixar a comunidade de especialistas resolver o problema. Ele continua, “eu preferiria restringir tal discurso ao lugar que ele pertence, um artigo científico publicado por Tim White em qualquer revista em que ele fosse capaz de algo como um argumento baseado em números reais, fósseis reais e não apenas em opinião”.

Para cavar um pouco mais fundo, eu falei com o professor Berger. Eu nem havia completado minha primeira questão quando ele disse, “eu não sei porque [White] diria isso. Ele parece estar indo apenas na anatomia e se você fizer isso, nós provavelmente não iremos longe o suficiente”! Berger começou a recitar uma lista de diferenças anatômicas entre o Homo naledi e o Homo erectus antes de meditar, “você sabe, [paleontoantropologia] é um campo muito público e essas coisas acontecem no holofote com grandes personalidades e é claro que alguns dos argumentos, particularmente os levantados na mídia, não tem nada a ver com ciência”.

Levantei a questão de se as preocupações de White, na verdade, derivam de uma divergência muito maior, isto é, se todo o registro fóssil humano pode ser reduzido a apenas algumas espécies, cada uma se transformando na outra. Berger concordou, mas atacou novamente: “gostaria de acrescentar que o que ele diz e o que ele faz são duas coisas diferentes. White fala dessa forma sobre os fósseis de outras pessoas, mas tudo o que ele encontra são novas espécies”.

Surpreso, perguntei se eu poderia citá-lo sobre isso. “Sim, claro. Quero dizer que ele pega minúsculos fragmentos como garhi [Australopithecus garhi]… e chama isso de nova espécie. Ele publicou um novo gênero em uma errata! Ações falam mais alto que palavras”.

Hawks ecoou tal crítica em seu blog, indicando que White, “não tem tempo para espécies que ele mesmo não tenha nominado”.

Quando perguntei a Berger onde ele estava nas discordâncias sobre uma rica variedade de especiação entre os hominídeos contra uma árvore familiar magra evoluindo lentamente até o Homo sapiens, ele claramente ficou ao lado de Tattersall: “O que o naledi e o Homo sediba claramente nos mostram é que deve ter havido alguma radiação adaptativa”.

Entretanto, Berger aconselha cautela no assunto. “Historicamente, paleoantropologia tem sido um campo de fragmentos. O que os esqueletos completos estão nos mostrando é que [usando] pequenas partes específicas da anatomia, como uma mandíbula ou alguma dentição ou mesmo um crânio, para tirar conclusões sobre outras partes ou sobre o corpo inteiro pode ser muito enganador”.

Eu perguntei “porque estas espécies acabam sendo mosaicos de características encontradas em outras espécies?”. Ele respondeu “exato, sim”.

Berger continuou, “há dois cenários possíveis. Um, e eu acho que esse é o mais lógico, é que se nós podemos obter um registro fóssil completo, nós vamos ver um monte de radiação adaptativa. Existe a possibilidade de nós temos nos enganado nos baseando em um registro muito fragmentado. Eu não acho, entretanto. Tanto o naledi quanto o sediba nos apontam que seja menos provável. Eu penso que nós temos visto um grande número de experimentos [com anatomia e modo de vida] ocorrendo ao longo de todo esse tempo”.

Se uma coisa não é Australopithecus, é Homo. Se não é Homo, é Australopithecus. Talvez seja o tempo para nós pararmos de enfiar novas morfologias nos velhos escaninhos que temos tido por cem anos.

Berger ainda teve problemas com muitos paleoantropólogos, particularmente nos EUA, que colocam peso indevido na idade do fóssil ao invés da filoginia. “Você não precisa necessariamente saber quão velho alguma coisa é para saber como ele se relaciona com outra coisa. Há uma tendência na paleoantropologia nos últimos 40 anos que diz que se você tem a data de algo, você conhece o que isso é. Isso só faz sentido se apenas uma espécie de hominídeo tenha existido a cada tempo”. Essa é a dificuldade.

Por conta de White ter insistido que o naledi é na verdade um erectus, eu perguntei se a datação do naledi iria ajudar a resolver isso. Berger duvidou: “eu acho que ele diria que ele já sabe quantos anos ele tem! [Risos]. Ele poderia dizer-lhe a data, já que é Homo erectus!”.

Eu não pude resistir sondar por algum resultado não publicado relacionado à data, mas Berger ainda não está pronto para falar sobre isso. “Eu pedi quatro métodos independentes de datação antes de sair com uma idate porque, enquanto as questões as questões que fazemos na primeira fase não exigem uma data, há outras questões que precisam ser endereçadas onde a datação é importante, como a questão do potencial sepultamento solene. Portanto, eu não quero cometer o erro que outros cometeram pela liberação de uma data que não é a melhor que podemos ter. Nós temos visto os resultados disso nas brigas que irromperam no passado, que podem ser bastante destrutivas”.

Outro assunto que divide a comunidade de paleoantropólogos é a necessidade de revisar o gênero Homo, que sofre de marcos pobres e características de definição vagas. Como eu escrevi antes, a descoberta do Homo naledi destaca isso perfeitamente. Eu perguntei a Berger se ele concorda que é tempo de revisar o Homo, “Ah, sim, e nós estamos trabalhando nisso também. Nós estávamos bem no centro da discussão sobre o sediba e de novo sobre o naledi quando metade do campo dizia que deveria encaixar no Homo e a outra metade que deveria encaixar no Australopithecus. A ironia disso!

Tattersall também lamenta isso. “Porque eles descobriram um cume na testa de algum dos crânios [do naledi] e você não pode ver cumes na testa no Australopithecus, tem que ser Homo. É bem assim que funciona. Se uma coisa não é Australopithecus, é Homo. Se não é Homo, é Australopithecus. Talvez seja o tempo para nós pararmos de enfiar novas morfologias nos velhos escaninhos que temos tido por cem anos”.

Eu perguntei se Berger pensava que o naledi provavelmente acabaria como um novo gênero se o Homo fosse revisto. “Você sabe, eu não sei onde as coisas vão acabar se chegarmos a uma nova síntese. Nós provavelmente precisamos de mais fósseis para realmente fazer isso, especialmente mais esqueletos”.

Esse é o único ponto que todo paleoantropólogo pode concordar. Nós precisamos de mais fósseis.


Nathan H Lents* Nathan H Lents é professor e diretor do Programa de Biologia Celular e Molecular no John Jay College da  The City University of New York. Ele mantém o blog The Human Evolution.

 

Fonte: Skeptic Magazine
Tradução: Maurício Moura

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